As marcas dos atos golpistas ainda estão presentes nas sedes dos três Poderes e ajudam a reafirmar, todos os dias, a trincheira aberta contra a impunidade. Analistas acreditam que inquéritos devem ser abertos contra membros das Forças Armadas cujas atuações sejam contestáveis, e que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem oportunidade de pacificar a relação, se conseguir separar “o joio do trigo”.
Horas após a tentativa de golpe nas sedes dos Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro, a resposta do governo foi enérgica. Um processo iniciado com o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, por 90 dias, seguida de uma ofensiva da Polícia Federal e do Judiciário contra participantes e financiadores dos atos, que chegou a deter mais de 1,5 mil pessoas.
Entraram na mira da Procuradoria-Geral da República (PGR), outrora impassível sob Bolsonaro, autoridades da linha de comando das tropas inoperantes, quando não coniventes, com as cenas de barbárie. O ex-secretário de Justiça do DF e ex-ministro de Bolsonaro, Anderson Torres, foi preso neste sábado (14) ao retornar dos Estados Unidos por determinação de Alexandre de Moraes.
O ministro do STF também havia determinado a prisão do ex-comandante da PM, Fábio Augusto Vieira, e acatou pedido da PGR para investigar também o ex-secretário de Segurança Pública em exercício, Fernando de Souza Oliveira, além de Ibaneis Rocha.
Nesta segunda-feira (16), o procurador-geral Augusto Aras, que esteve na caminhada simbólica de autoridades pela democracia na noite do dia 9, apresentou denúncia contra 39 bolsonaristas, de quem solicitou o bloqueio no valor de R$ 40 milhões em bens. Ele também declarou ser importante investigar a participação do ex-presidente Bolsonaro, descrito como possível “beneficiário por essas condutas”.
Desconfiança de Lula chegou a ser externada a jornalistas
O único flanco ainda aberto é o das Forças Armadas, cuja atuação no dia 8 é repleta de dúvidas e desconfianças. Levantamento publicado pelo jornal O Globo nesta terça (17) aponta que pelo menos 15 integrantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, além de um bombeiro, são suspeitos de envolvimento com as invasões. Oficiais da reserva ou em exercício foram flagrados nos fatídicos acontecimentos ou com publicações de incitação nas redes sociais.
Alguns chegaram a produzir provas contra si próprios, como o capitão-de-mar-e-guerra reformado Vilmar José Fortuna, que publicou uma foto com sua esposa em frente ao Congresso tomado pelos extremistas. Depois disso, ele foi exonerado do cargo que ocupava há quase uma década no Ministério da Defesa.
Para o sociólogo Paulo Silvino Ribeiro, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, é importante, no primeiro momento, individualizar as condutas. “Os militares são como instituição contra o governo Lula? Na minha opinião, não. Nesse momento, parte dos grupos refratários à democracia e ao presidente Lula em especial, ainda têm funções de comando. Esse é o problema. Investidos das suas funções, eles têm poder para dar e não dar ordem. Agora, quando não se dá ordem ou não se segue, é crime de prevaricação”, aponta.
A tese de que processos administrativos podem ser abertos é compartilhada pelo advogado Paulo Freire, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). “Se for uma coisa interna das Forças Armadas, passa por inquérito militar, mas se envolver civis, nós temos a particularidade que o inquérito é presidido pelo STF. Então qual é o caminho que o Alexandre de Moraes vai adotar ao se deparar com possíveis responsabilidades das Forças Armadas? Ele vai submeter isso às Forças Armadas ou ele mesmo vai continuar conduzindo? São muitas coisas em aberto ainda”.
Durante café da manhã com jornalistas, no dia 12, Lula admitiu que “perdeu a confiança” nos militares, em especial com a atuação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), braço de inteligência das Forças Armadas, comandado até dezembro pelo general Augusto Heleno. O presidente também cobrou explicações sobre o acesso dos vândalos ao Palácio do Planalto, que poderia ter sido facilitado por quem deveria resguardar o edifício, “já que nenhuma porta foi arrombada ou forçada, estavam abertas”.
“Está na hora de ver a responsabilidade de cada ator, atribuições que tinham. O Batalhão da Guarda Presidencial, por exemplo, por que não entrou? Em que momento ele foi desmobilizado? O comandante recebeu a ordem para entrar em atuação e não entrou? Aí você vai subindo até chegar na escala, que no caso é o comandante do Exército, o general (Julio Cesar de) Arruda. O GSI não sabia ou sabia? O que fez?”, questiona a cientista social Ana Penido Oliveira, pesquisadora sobre Defesa e Forças Armadas.
Já para o ministro da Justiça Flávio Dino, a Polícia Federal permanecerá apenas acompanhando os casos, pois precisaria ser requisitada pelo STF. “É claro que houve adesão, adesão de alguns e não todos. A questão posta é se esta adesão foi orientada previamente ou foi apenas um gesto de simpatia em relação ao golpe de Estado e, portanto, de antipatia ao governo legitimamente eleito”, disse.
Forças Armadas também têm chance de dar respostas à sociedade
Embora criticado pela pouca eficiência e por ter considerado os protestos bolsonaristas “democráticos” após a posse de Lula, José Múcio foi bancado pelo chefe e permanece à frente do Ministério da Defesa. Segundo Ana Penido, Múcio continua sendo uma ponte para a aproximação do governo com as Forças Armadas, revertendo a frieza inicial. “Se você for ver a posse dos comandantes militares, eles não mencionam o Lula. Até agora, não retribuíram esse gesto de pacificação”, analisa.
Sob os olhares da opinião pública, que tem classificado os episódios como “terrorismo”, os militares têm sido instados a darem respostas públicas e eficientes. Na prática, há ceticismo entre os analistas quanto a eventuais punições no âmbito da Justiça Militar, que possui histórico de leniência e corporativismo simbolizado pela ampla anistia oferecida durante a Ditadura.
Por outro lado, punir militares envolvidos nos atos golpistas seria uma questão de autopreservação das Forças Armadas. “Eu quero crer que a Justiça Militar tenha a preocupação de responsabilizar e trazer isso à tona, porque não se trata apenas de defender um ou dois nomes em especial, mas sobretudo de defender as instituições e seu próprio papel original na democracia. Asseguro que a maioria da sociedade civil não apoiou esses atos e não quer intervenção militar”, afirma Ribeiro.
Focado em seguir seu slogan de “reconstruir o país”, Lula conseguiu uma trégua da oposição e aproximou adversários políticos para a difícil tarefa de apaziguar os ânimos e construir pontes. Ana Penido observa que a Defesa foi o único grande tema que não teve um grupo específico durante o governo de transição, mas que Lula “sai fortalecido, inclusive para mudar sua postura sobre o que vinha sendo pensado para as Forças Armadas e para as políticas de defesa e inteligência”.
“O dia 8 coloca esses temas na pauta não só para o Lula, mas para toda frente ampla, para as outras instituições, Congresso e Judiciário juntos, e para a população em geral. Mesmo a população que não votou no Lula olhou e disse ‘o que é isso? Estão quebrando tudo literalmente'”, finaliza.
Publicado no Brasil de Fato