Por Alice Andersen
Ilustrações, memes e cartuns criticando o PL 1904/2024 têm viralizado nas redes sociais desde que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), aprovou a urgência do projeto de lei. Caso ele seja aprovado, uma mulher que interromper uma gravidez decorrente de estupro poderá enfrentar uma pena maior que a do próprio estuprador, de 20 anos!
Muitas dessas ilustrações contra o PL fazem comparações entre esse episódio, talvez considerado um dos mais absurdos já feitos em plenário no Brasil, e a série americana “The Handmaid’s Tale”, também conhecida em português como “O Conto da Aia” (2019). Baseada no livro homônimo de Margaret Atwood, originalmente publicado em 1985, a série estreou em 2017 nos Estados Unidos e imagina um futuro não muito distante onde mulheres são submetidas a uma teocracia autoritária, onde elas são privadas de seus direitos básicos e têm seus corpos explorados.
Fundamentalismo religioso
Esse cenário é assustadoramente similar ao retratado no “O Conto de Aia”, onde as mulheres são reduzidas a meras ferramentas de reprodução, sem voz ou poder sobre suas próprias vidas. Na série, as personagens aparecem vestindo roupas estranhas em uma casa de estilo clássico, levando um tempo para percebermos que não se trata do passado, mas do futuro. Um grupo ultraconservador e religioso toma o poder nos Estados Unidos através de um golpe de Estado, impondo um modo de vida extremamente rígido.
Para complicar, a maioria das mulheres no mundo se tornaram estéreis, resultando no recrutamento compulsório das poucas que ainda podem gerar crianças. Essas mulheres, chamadas de aias, são forçadas a servir nas casas dos líderes do regime, dando filhos para os casais.
Para engravidarem, as aias são submetidas a constantes e verdadeiros estupros ritualizados, vivendo uma vida cheia de regras e limitações. Elas perdem seus nomes reais, não podem andar sozinhas pelas ruas, são constantemente vigiadas e sequer podem ler. Em um cenário tão opressivo, a revolta não demora a surgir: seja na resistência individual de cada mulher, seja na organização clandestina de pessoas que se opõem ao novo regime, a série retrata o início da rebelião contra um sistema extremamente machista e conservador.
No Brasil, além de machista e racista, a cultura da objetificação torna o corpo da mulher um instrumento meramente sexual. A ideia de que a mulher possui um corpo voluptuoso, contribui para os altos índices de estupro e feminicídio, principalmente entre mulheres negras. Isso se torna ainda mais perigoso quando a indústria usa essa objetificação para atrair clientes e consumidores, retroalimentando a naturalização do abuso, o que acontece com muita frequência.
Passo atrás nos direitos das mulheres
Com certeza nenhuma mulher ou menina gostaria de passar pela experiência do aborto, mas tambem não tê-lo de forma segura quando é necessário, é deixar de lado uma questão muito importante. Polarizar o assunto, estigmatizá-lo e reduzi-lo a questões morais ou religiosas é opção para mentes fechadas contidas em sua própria bolha, mesmo que o assunto não seja fácil de refletir.
Aprovar um PL assim é criar um absurdo em forma de lei e retroceder milhares de anos. Caso os que propuseram o projeto estivessem mesmo preocupados com a vida, pensariam em políticas públicas voltadas para a violência contra a mulher, a educação sexual em escolas, e tantos outros projetos para prevenir crimes desse tipo, ao invés de propor o abandono e a tortura psicológica às mulheres.
Além disso, outra questão a se pensar: como fica a vida da criança que nasce de um estuprador e uma mãe vítima de violência? “O Conto de Aia” mostra que medidas autoritárias estão mais presentes do que nunca dentro de democracias comuns, como a do Brasil, ainda recém governada por Bolsonaro (2019-2022). O ‘fascismo’ deixa rastros.
“Eu acredito na resistência como acredito que não pode existir luz sem sombra; ou antes, não pode existir sombra a menos que exista também luz.”
Margareth Atwood