
Foto: Thiago Gadelha / Acervo SVM
Em setembro de 2024, em meio à corrida eleitoral em Sobral, na região Norte do Ceará, um homem suspeito de publicar ameaças de morte nas redes sociais contra a ex-governadora cearense e candidata ao Executivo municipal naquela eleição, Izolda Cela (PSB), foi preso numa ação conjunta da Polícia Militar com a Polícia Civil.
Além do crime de coação por violência ou grave ameaça no contexto eleitoral, pesaram contra ele a denúncia de que ele integraria uma facção criminosa com atuação em diversos estados brasileiros, o Comando Vermelho (CV).
Identificado como Kevin Henrique Lopes Cavalcante, o acusado foi submetido a uma audiência de instrução na tarde da sexta-feira (4), no Juízo da 93ª Zona Eleitoral de Fortaleza, onde depôs. Da mesma maneira, foram ouvidas testemunhas que acompanharam o caso — incluindo a própria Izolda, já que foi solicitado por ela sua retirada da condição de vítima no processo.
Os depoimentos, que foram acompanhados pela equipe do PontoPoder, dão conta da forma como grupos criminosos atuaram para intervir no processo eleitoral no interior do estado, com intimidações de eleitores em locais controlados essas organizações, cobranças de valores a candidatos como forma de “pedágio” e ameaças de morte contra políticos.
Intimidações e ameaças nos bairros
Segundo contou uma das testemunhas, um oficial da Casa Militar responsável pela segurança institucional de Izolda, ao longo da campanha eleitoral em Sobral, foram chegando ao seu conhecimento informações sobre um veto a atos de campanha da então candidata em determinados territórios da cidade.
Em juízo, a testemunha mencionou que um evento, realizado em uma localidade chamada de Campo dos Velhos, ocorreu sob ameaças, pois, de acordo com informantes que foram até lá passar mensagens da facção, não havia autorização.
O oficial disse que o teor das mensagens repassadas dizia que, se a mobilização acontecesse ali, “pessoas iam ser baleadas” e que “ia ter morte”. O encerramento do ato no Campo dos Velhos foi marcado por um episódio envolvendo o disparo de fogos de artifício contra pessoas da campanha da ex-governadora. “As pessoas estavam dispersando e acenderam o rojão apontando para os militantes. Foi a primeira vez que alguma coisa de fato aconteceu. Saiu do campo da ameaça, da especulação”, relembrou ele.
Conforme narrou, outro acontecimento também chamou a atenção, desta vez na Margem Esquerda, uma área pública da cidade que margeia o Rio Acaraú. Nesta ocasião, alguns dias após a primeira situação com rojões, uma passeata com a presença de famílias foi realizada no local. “A gente já tava com mais atenção quanto a possíveis acontecimentos”, relatou o militar.
De acordo com ele, 9 a 12 jovens foram encontrados portando rojões. “Disseram que era para estourar no ato. Todos eles moravam em territórios em que há a presença do Comando Vermelho”, frisou, pontuando que os estouros seriam contra as pessoas que participavam da passeata.
Uma terceira situação narrada pela testemunha foi no bairro Parque Santo Antônio, em outra caminhada com apoiadores. “Estava prevista uma passeata e, antes de iniciar, pessoas chegaram e disseram que não podia fazer aquele ato lá, era proibido. Eu disse que a Izolda ia seguir, que ela ia seguir a agenda que quisesse cumprir”, discorreu, salientando que a ordem foi atribuída pela pessoa como do chefe da facção.
No dia da atividade no Parque Santo Antônio, segundo o depoimento, nada saiu do campo das ameaças. Mas, pelo que contou o oficial, pessoas que apoiavam Izolda relataram que além da proibição de atos de campanha em áreas controladas pelo Comando Vermelho, as pessoas não podiam usar camisetas ou adereços de apoio à candidata do PSB em Sobral e vereadores pagavam uma espécie de “pedágio” para circular em determinados perímetros.
A sucessão de acontecimentos no município, ao que explicou o primeiro homem ouvido pelo juiz, foi atípica, considerando outros processos eleitorais. “Primeira vez que soube de situações desse tipo foi agora na campanha de 2024”, disse o depoente, que teve experiências anteriores trabalhando no perímetro.
Ele reforçou a acusação de que Kevin Henrique integra a organização criminosa e que viu uma captura de tela da postagem do réu na época. “É a informação que recebi dos policiais que trabalham na cidade”, acrescentou, citando a relação do rapaz com o CV.
‘Me senti ameaçada’
A excepcionalidade foi reforçada por Izolda, segunda ouvida na audiência. De acordo com ela, na pré-campanha teve notícias de pré-candidatos à Câmara Municipal sobre “interferências que até então nunca tinha visto acontecer em Sobral” ou “nem mesmo no estado”.
“Eram relatos sobre situações em que eram ameaçados, avisados de que não poderiam entrar em tal local se não houvesse pagamento de certa quantia”, acrescentou, revelando que os políticos se mostravam assustados e inseguros com o contexto.
No decorrer da campanha, continuou a ex-governadora em seu relato, começaram a acontecer o que chamou de “situações que fugiam da normalidade”. “Por exemplo, em uma determinada atividade de rua, no final, ouvimos rojões. Causou estranheza, mas no primeiro momento achei que era alguém atravessando a regra, porque é proibido essa coisa de fogos em Sobral”, ponderou.
“Depois comecei a ouvir coisas, de pessoas que estavam acompanhando, na segurança, que aquilo não era tão inocente, tinha uma intenção deliberada de causar problemas, algum tipo de interferência”, depôs. Segundo Izolda, ocorrências semelhantes aconteceram algumas vezes em atos dela.
A escalada de disparos de rojões e intimidações verbais para inibir movimentações de apoio à participação do PSB na eleição de Sobral antecedeu a publicação ameaçadora de Kevin Henrique na internet.
A postagem, que trazia uma foto de uma arma, dizia que, na próxima vez que uma atividade de campanha desafiasse ordens do grupo criminoso, seria “bala na Izolda”. O conteúdo foi relatado pelas testemunhas e admitido pelo acusado durante o depoimento de sexta-feira.
“E, logo depois disso, aí aconteceu uma ameaça, publicada em rede social, diretamente para mim, citando meu nome”, comentou Izolda Cela, na qualidade de testemunha do processo, ao ser indagada pela representante do Ministério Público Eleitoral (MPE). Conforme a política, ela soube da postagem, feita depois dos ataques, quando pessoas próximas dela lhe mostraram o print. Um boletim de ocorrência foi registrado pela campanha em seguida.
Segundo a ex-governadora, ela não tomou conhecimento diretamente sobre o envolvimento do acusado com o grupo criminoso, mas que ele citou, em depoimento para a polícia, ordens recebidas para a soltura de rojões, vetos a atividades de campanha do PSB em bairros e a própria ameaça realizada nas redes sociais.
Provocada pela representante da Defensoria Pública da União (DPU), que faz a defesa de Kevin Henrique, Izolda revelou que se sentiu ameaçada pelas atitudes do acusado. “Me senti, porque é uma coisa estranha, você ver aquilo, com seu nome e expressando: ‘da próxima vez, vai acontecer tal coisa'”, comentou a política.
Oito faccionados presos
O acusado de ameaça foi preso em 2 de setembro de 2024, no Centro de Sobral. Pelo que informou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) à época, ao autuar o suspeito pela ameaça e por integrar organização criminosa, foi observado que ele possuía antecedentes criminais por tráfico de drogas, roubo, furto e crime contra a administração pública.
Naquele mesmo mês, mais três pessoas foram presas por suspeita de participação na ameaça contra Izolda Cela. Mais quatro foram apreendidos por envolvimento no mesmo caso — o que depois foi reconsiderado pela Justiça Eleitoral.
Fora Kevin Henrique, o restante do grupo apreendido teve a denúncia rejeitada pelo juiz eleitoral André Teixeira Gurgel, por não ter sido provada participação no crime em questão — apesar disso, por elementos que apontavam a ligação dos membros com o CV, essa parte do processo foi encaminhada para a Vara de Delitos de Organizações Criminosas, da Justiça Estadual.
Na sexta, dois policiais que conduziram Kevin para a Delegacia Regional de Sobral, no dia em que foi preso, também testemunharam. O primeiro deles contou que a publicação do acusado passou a circular durante a noite, depois de um incidente com fogos de artifício, e que, como desdobramento de uma diligência da polícia, houve a abordagem. “Tinha uma arma de fogo e essa frase”, alegou, mencionando a publicação da expressão revelada pelas demais testemunhas e pelo próprio acusado.
Kevin, segundo o primeiro depoente, era conhecido pelos policiais locais por participar de uma torcida organizada de um time de Sobral. O policial falou ainda que é de conhecimento de todos que no bairro do réu há um domínio do Comando Vermelho. O militar disse que um aparelho celular foi apreendido com ele e levado para investigação, mas nenhuma arma foi encontrada pela equipe da polícia.
O outro agente de segurança, que fez parte da equipe que conduziu o acusado, explanou que ele, ao ser abordado pela guarnição, disse ter feito como uma “brincadeira” quando publicou a imagem da arma com a frase insinuando a realização de um atentado contra Izolda Cela.
“A priori, ele tinha falado que foi só uma brincadeira, não tinha intenção de machucar ninguém”, declarou. A testemunha reiterou que Kevin era conhecido por atos criminosos em Sobral, especificamente pela ligação com o Comando Vermelho.

CV mandou ‘salve’
Escoltado pela Polícia Penal, por estar no sistema penitenciário desde a prisão em flagrante, em setembro do ano passado, e algemado, o réu depôs na 93ª Zona Eleitoral. Desta vez, ele negou fazer parte da facção criminosa, mas disse acreditar fizeram essa ligação por morar no Alto Novo, bairro que, nas palavras dele, “o Comando Vermelho predomina”. Kevin Henrique, entretanto, admitiu fazer sinais que remetem a um pertencimento ao grupo em fotos postadas em redes sociais.
Ao colher o depoimento, o magistrado André Teixeira Gurgel questionou ao réu sobre conversas encontradas em seu celular pelos investigadores que mencionavam expressões como “tropa do CV” e “tropa do paizão”. “Eram conversas normais mesmo”, se defendeu o acusado, negando haver conteúdos fotográficos com alusões a um pertencimento ao Comando Vermelho.
Kevin confessou ter feito a publicação da foto com ameaças contra a então candidata do PSB, no mesmo dia em que aconteceu uma atividade de campanha com disparos de rojões contra militantes. A frase postada foi descrita por ele, mesmo negando participação nos atos com fogos que antecederam a postagem: “na próxima, bala na Izolda”. Ele disse que soube de “um boato”, por amigos, que dava conta de que a facção teria mandado um “salve” ordenando o ato criminoso.
A representante do Ministério Público citou que, na primeira vez que foi interrogado, na delegacia, o acusado já havia falado sobre o “salve”. À Polícia Civil, ele ainda listou lugares em que a campanha da ex-governadora estava proibida, por ordem do coletivo criminoso. Segundo ele, Izolda e apoiadores não podiam entrar em bairros como Centro, Sinhá Sabóia, COHAB II, Terrenos Novos, Parque Santo Antônio, Alto Brasília, Recanto e Vila União.
Concluída a audiência, foi aberto o prazo para que o MP possa apresentar memoriais e, posteriormente, o período para que a DPU possa se manifestar. A sentença do julgamento será proferida depois das posições de ambas as partes.
Justiça acompanha casos em outras cidades
Em outubro do ano passado, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) indicou o mapeamento de, pelo menos, seis municípios cearenses em que a interferência das organizações criminosas na disputa demandava, naquele momento, mais atenção. Segundo o órgão, a lista incluía Caucaia, Santa Quitéria e Sobral. Fortaleza era considerada como um caso à parte, em que a atuação para mapear e reprimir esse tipo de impacto começou antes mesmo do período eleitoral.
Por questões de segurança, o TRE manteve o sigilo sobre o detalhamento das ações nesses locais e os nomes dos outros três municípios que compõem a relação. Entretanto, a Justiça Eleitoral considerou cinco principais formas de influência do crime organizado no processo eleitoral — desde ameaças e intimidações até a participação de membros de facções nas campanhas eleitorais.
Na última quinta-feira (3), o prefeito de Potiretama, Luan Dantas (PP), foi preso numa operação policial por suspeita de integrar uma organização criminosa. A defesa do político, no entanto, negou que o cliente foi detido por esse motivo, argumentando que ele foi sim conduzido, porém por incêndio criminoso.
No dia 31 de março, a Justiça Eleitoral, em primeira instância, decidiu tornar inelegível por oito anos o suplente de vereador de Iguatu, Jocélio Viana (PSD), por suposto envolvimento com facção criminosa e abuso de poder econômico durante a campanha eleitoral de 2024. Foi determinada também a recontagem dos votos no município. O acusado considerou a sentença “equivocada” e “sem provas”.
Em Santa Quitéria, o prefeito eleito José Braga Barroso (PSB), o “Braguinha”, também é investigado por envolvimento com o Comando Vermelho. Atualmente, ele está em liberdade por questões médicas, depois de mais de dois meses em prisão domiciliar. Por força de uma medida cautelar da Justiça Eleitoral, ele não pôde assumir a gestão municipal. O advogado dele alega inocência.
A suplente de vereadora de Santa Quitéria, Kylvia Maria de Lima Oliveira (PP), também é investigada por estar supostamente ligada à Braguinha no esquema criminoso. Ela foi beneficiada pela revogação da prisão preventiva que cumpria. Kylvia, segundo o TRE-CE, teria “papel de articuladora” junto à facção. Os representantes da política não foram localizados pela reportagem.
Fonte: Diário do Nordeste