24 de dezembro de 2024
O enigma de um crime delicado

Foto: Reprodução

Conheci a obra Um Crime Delicado (1997), do escritor Sérgio Sant’Anna ao cursar a disciplina de Estudo da Narrativa ministrado pelo prof.  Teoberto Landim. Aleatoriamente cada estudante elegeu um livro para analisar as características desse fenômeno. Prêmio Jabuti em 1998 de melhor romance, eis uma história de amor embebida no erotismo, na comunhão de diferentes artes, com toques de mistério em que o leitor é convidado a descobrir o segredo não da esfinge, mas de uma musa (Inês).

A obra Um Crime Delicado (1997) está dividida em três partes. Em nenhuma delas há um subtítulo. Somente os números um, dois e três. A primeira parte é a mais extensa (1- 84), segunda (87-113) e a última (117-132) páginas. Observa-se que o livro não apresenta micronarrativas. A narrativa é única e seu narrador, em 1ª pessoa (Antônio Martins) – auto diegético, indeciso, de identidade múltipla, é um crítico de teatro que cultuava a solidão, e não admitia a prolixidade: “Vou me eximir de relatar em suas minúcias os modernos (…)”. Contudo, vale-se de um discurso turvo para contar a sua narrativa: “Escrever. Fragmentos dispersos, cenas nebulosas, frases soltas, olhares, visões reais ou subjetivas…”

Apesar de a narrativa ser única em Um Crime Delicado (1997), ela se assemelha a um quebra-cabeça em que o leitor deverá montar o enredo, uma vez que não há uma organização lógica, porque estamos diante de um personagem-narrador que conta em tom retrospectivo e confessional a sua estória à medida que os acontecimentos vão se formando na sua própria memória – daí ser também o tempo da narrativa – e, que, portanto, é necessário a todo instante organizá-lo para que o narrador possa segui-lo: “Então é preciso organizar esse fluxo, como o tenho feito, para que eu próprio possa segui-lo, dominá-lo ao menos nestas páginas (…)”.

A princípio, senti-me atraída pelo título, depois, pela capa. Seria a observação primeira de um leitor diante de uma obra sua capa e/ou contracapa? Se a obra se chama Um Crime Delicado (1997) a resposta é simples, sim. O autor Sérgio Sant’ Anna reproduziu em seu livro, respectivamente, as pinturas “Pigmaleão e Galatéa”, de Jean-Léon Gérome e “Las Meninas”, de Diego Velásquez. Ambas são partes integrantes da narrativa, uma vez que, o narrador estabelece com as mesmas uma relação intertextual, ou seja, de diálogo.

Como muitos mitos gregos, a história de Pigmaleão e Galatéa tem versões ligeiramente diferentes. Pigmaleão, rei de Chipre, homem solitário não apenas por amar a liberdade, mas também por encontrar defeitos em todas as mulheres na mais familiar dessas versões criou uma estátua e a ela deu o nome de Galatéa. No entanto, ao terminá-la apaixonou-se profundamente por ela. Pigmaleão pediu então a Afrodite que desse a ele uma mulher com as mesmas características de sua escultura. A deusa, conhecedora de seu amor pela obra escultórica, tornou-a viva.

O narrador de Um Crime Delicado (1997) é uma espécie Pigmaleão. Ele é um crítico de arte que vive de forma solitária procurando preservar sua liberdade, mesmo que isso signifique ter à sua “inteira disposição uma cama de casal onde possa passar algumas horas lendo ou simplesmente divagando”. No entanto, ao conhecer a modelo Inês, o narrador-personagem apaixona-se e sua vida, outrora permeada pela razão, muda completamente a ponto de idealizar a criação do ser amado: “É estranho e eletrizante o amor, fazendo com que a mulher que estejamos abraçando, possuindo, (…) não seja uma qualquer, mas aquela em especial, a quem escolhemos até independentemente de nós mesmos”(…).

O jogo intertextual se completa quando a pintura de Pigmaleão e Galatéa é transposta para o quadro “Las Meninas”, ou melhor, o quadro de Jean –Léon Gérome ocupa dentro do quadro de Diego Velásquez o lugar de espelho. Pigmaleão aqui representado por Antônio Martins e Galatéa por Inês passam a ser os modelos de Velásquez caracterizado pelo pintor Vitório Braccanti, possível amante de Inês.

Assim, estamos diante de um romance pós-moderno, entendendo por ficção pós-moderna, a narrativa fragmentada, múltipla, polifônica em que dialogam vários textos: literatura, pintura, teatro e música.

Um Crime Delicado (1997) é um romance cuja narrativa é múltipla, aberta, marcada, sobretudo pelo dialogismo. A pintura dialoga com a literatura, esta com o teatro e, em seguida, com a música. É um texto rico, recheado de conhecimento de outras artes. É um texto construído a partir dos fragmentos que vão se formando na mente do personagem-narrador. Para entendê-lo, faz-se necessário um leitor bastante atento que vai, aos poucos, montando as peças até formar um quebra-cabeça. Que tal montá-lo?

 

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