Em evento em Los Angeles, gigante do streaming mostra novas produções e revela a importância de conteúdos globais na plataforma
Hoje, o coração de Hollywood é um retrato fiel ao momento da indústria do entretenimento e economia americanas. Cartazes de grandes produções para o cinema como Gladiador 2 se misturam com séries de streaming como Round 6 e Stranger Things, assim como carros milionários passam brilhando por uma dezena de pessoas desabrigadas. Para quem analisa somente a parte do entretenimento, as evidências são ainda mais gritantes da mudança que todo o ecossistema artístico de Los Angeles vive. Nunca o cinema dividiu tanto espaço com outras mídias para um mesmo tipo de conteúdo. A diferença maior, porém, vem quando nos afastamos da Calçada da Fama, cruzamos a Sunset Boulevard e chegamos aos domínios da Netflix, perto da rua Vine ou Van Ness, onde estão as sedes da gigante de tecnologia.
Os típicos galpões de estúdio dão lugar a prédios com arquitetura moderna, as calçadas e fachadas coloridas são substituídas por tons mais sóbrios e metálicos, mas permeados por ilustrações vivas que fazem alusão às produções da empresa. Andar pelo espaço do Tudum Theater, onde acontecem os eventos da empresa, traz mais à memória algo do Vale do Silício em São Francisco do que os corredores largos dos glamorosos estúdios de Hollywood — é como passear por uma cidade onde o futuro do mundo digital encontra os tempos de glória do cinema americano, só que com uma grande diferença: não é sobre cinema, e não é só sobre os Estados Unidos.
Isso ficou evidente durante o Netflix International Showcase 2025, evento que trouxe todo o calendário de conteúdo não-americano do streaming, realizado na última segunda-feira, dia 17. Comandado pela chefe geral de conteúdo Bela Bajaria, o painel reuniu líderes de programação de todas as principais regiões do mundo, nomes importantes de núcleos de produção de países específicos como Espanha, México, Coréia e Japão, além de jornalistas do mundo inteiro — e o Omelete estava entre os convidados. O foco, claro, foi mostrar como, para além das ruas daquele bairro, a Netflix se preocupa em fomentar e achar as novas Hollywoods mundo afora. Um fato é que a empresa não poupa esforços para tal, já que até hoje são mais de 1000 produtores parceiros espalhados em mais de 50 países, segundo divulgado no evento.
Um algoritmo sem fronteiras
Bela Bajaria, Chefe de Conteúdo Global da Netflix
Como nenhuma outra empresa do ramo, a cada ano fica evidente que a Netflix entende como localizar o seu conteúdo para além de uma boa dublagem, ótimas traduções ou ações de marketing específicas com influenciadores e celebridades nacionais. Ela trabalha com conteúdo local, feito por e para pessoas locais. “Quando você tenta fazer algo que agrade a todos, acaba criando algo que não agrada ninguém. Nosso primeiro objetivo é fazer com que séries e filmes ressoem em seu país de origem antes do mundo inteiro”, reforçou Bajaria, enquanto mostrava números que evidenciam a importância da expansão da produção para o negócio como um todo. “Atualmente, 80% dos nossos consumidores assistem a produções coreanas e 13% do que é consumido nos EUA é conteúdo estrangeiro”, revelou.
A executiva lembrou ainda a importância das recomendações dentro da plataforma, o que, ao lado das mais de 36 línguas dubladas e outras 33 legendadas, ajudam a levar conteúdo inédito para públicos acostumados somente a um tipo de produção. Em um gráfico que mostrava o tempo com que uma série coreana se tornava sucesso em outros países, ela lembrou que “a América Latina se destaca como uma grande base de fãs de k-content”. O mesmo exemplo serviu para séries e filmes espanhóis, como La Casa de Papel ou Sociedade da Neve, que se tornaram marcas reconhecidas fora do país de origem, como EUA e Europa.
O racional de recomendações não se limita à tecnologia, e está inclusive no discurso da marca ao anunciar novos produtos. O Eternauta, adaptação de um clássico literário vendida como a maior produção de TV já feita na Argentina, foi descrita como um “The Last of Us na neve, e na Argentina” por Francisco Ramos, VP de conteúdo para América Latina. Outro grande destaque foi Cem Anos de Solidão, primeira adaptação do icônico livro de Gabriel García Márquez. De acordo com Ramos, diversos estúdios tentaram levar a obra para as telas, mas a Netflix foi a única a conseguir por “respeitar os pedidos da família García Márquez, filmar o projeto em espanhol e na Colômbia”.
Por mais que o discurso seja sobre “produções locais”, a troca de experiência e conteúdos começa a ser um ponto importante para a Netflix. Isso fica evidente em outra produção latina, a brasileira Senna. Filmada em inglês e português, com atores e produtores dos EUA e Brasil, a série contará a história de Ayrton com a grandeza de um épico cinematográfico — o featurette exibido no evento é digno de filmes como Rush, de Ron Howard, ou Ferrari, de Michael Mann, que também conta com Gabriel Leone em seu elenco. E como a Netflix não dá ponto sem nó, nada mais cirúrgico do que uma série sobre Fórmula 1, um dos esportes que mais cresce nos EUA, falada também em inglês na plataforma que popularizou o reality Drive to Survive, conteúdo que para muitos é o responsável pelo renascimento da modalidade na região.
Cultura pop é global, mas começa pelo local
Francisco Ramos, VP de Conteúdo para a América Latina
Com pouco mais de 45 minutos, foi uma tarefa árdua englobar tantas produções e detalhar as histórias que vêm em 2025. Por isso, talvez, a Netflix decidiu dar mais evidência a três tipos de conteúdo: leste-asiático (ênfase em coreano e japonês), espanhol e indiano. O primeiro, definitivamente o mais comentado nos dias de hoje, ficou nos holofotes com Round 6, cuja segunda temporada estreia em 2024, e ainda criou um espaço muito interessante com a revelação de produções como All the Love You Wish For e Revelations.
All the Love You Fish For é como um romance de fantasia sobre uma garota que encontra um gênio da lâmpada e mistura um trilha sonora e o amor novelesco que os k-dramas tanto exploram; enquanto Revelations é de Yeon Sang-ho, do excelente Operação Zumbi, e conta a história de um pastor com dilemas de fé (e ainda conta com a produção de Alfonso Cuarón, reforçando a ideia de compartilhamento de talentos dentro da própria Netflix). Entre as várias produções japonesas, Até o Ultimo Samurai se destacou pelo visual clássico e grandioso, mas também por trazer temas fortes como a decadência destes guerreiros e as mudanças sociais do período Edo no Japão.
E falando sobre temas, a pergunta que mais se repetiu nas apresentações foi: por quê este tipo de conteúdo ressoa mundo afora? A resposta clássica seria “pois lidamos com temas que tocam a todos”, e a Netflix falou isso a todo momento. Por outro lado, o trunfo destas produções está em como esses temas são debatidos. Na fase espanhola do painel, o destaque foi para Um Fantasma na Batalha, produção de JA Bayona (de Sociedade da Neve), e para Refúgio Atômico, dos criadores de La Casa de Papel. Ambos tratam de lutas de classe, embates históricos e problemas intrínsecos à sociedade espanhola – mas que são feitos com uma narrativa grandiosa e envolvente o suficiente para se tornarem contos globais. “A possibilidade de contar nossas histórias, no nosso país e do nosso jeito é o que faz cada vez mais criadores confiarem na Netflix. Nós acreditamos na visão e na ambição deles”, comentou por vídeo o líder de conteúdo espanhol, Diego Ávalos.
Monika Shergill, VP de conteúdo da Índia; Francisco Campos, VP de Conteúdo para a América Latina; Minyoung Kim, VP de Conteúdo da Ásia; Larry Tanz, VP de Conteúdo do Oriente Médio, África e Europa; e Bela Bajaria, Chefe de Conteúdo Global da Netflix
O foco em conteúdo local ganha outra proporção quando o assunto é a Índia, já que dentro do gigantesco país existem diversas línguas, culturas e um costume de décadas em assistir filmes, não necessariamente séries. Por isso, sem nenhum pudor, a Netflix admite que ainda está começando a mudar os paradigmas locais, e conta com grandes estrelas da região para sedimentar a iniciativa. Séries como Delhi Crime, primeira produção indiana a ser coroada no Emmy Internacional, chega na terceira temporada em 2025; ao mesmo tempo que a Netflix vai apresentar seu primeiro projeto com Shah Rukh Khan, estrela de Bollywood que levará a própria empresa para criar uma série sobre os bastidores do cinema e TV na Índia. A prévia mostra uma dose significativa de efeitos visuais, números musicais e bom humor — tal qual foi apresentado para uma boa parte do mundo no ano passado com o épico indicado ao Oscar, RRR.
Um olho na tecnologia, outro na arte
Ao final do showcase restam poucas dúvidas sobre quão especial é o negócio que a Netflix montou fora dos muros de Hollywood. Somente pela possibilidade de atingir, hoje, 650 milhões de usuários, e atestar que 70% do conteúdo consumido é dublado ou legendado, comprova quão ávida por novas histórias está a audiência. Nem mais o público americano, famoso pelo bairrismo quando se fala em entretenimento, consome só a própria língua.
Existe, sim, um desafio enorme em conseguir trazer qualidade e consistência à tamanha quantidade – o próprio evento foi um atestado disso, já que não tem como falar sobre tudo que fazem em uma hora. Não ouviu-se quase nada sobre animações (que é um nicho enorme na parte asiática), produções africanas (que possuem um calendário dedicado); e do Brasil, somente Senna e Sintonia ganharam espaço, e Vini Jr., doc sobre o atleta brasileiro, teve uma rápida menção. É compreensível, pois a Netflix parece agir como um grande estúdio de cinema e televisão em cada região que atua, com número e escopo de produções que aos poucos rivaliza com nomes consagrados localmente (e citados no evento) como Globo e BBC.
É curioso também notar como todo o contexto da apresentação de Bela e companhia se desenvolveu baseado em dois pontos extremamente comuns em empresas de tecnologia: dados e experiência do consumidor. Enquanto os números revelam quão importante é apostar em produções locais para quebrar barreiras, a satisfação do cliente, quando se trata de conteúdo, passa por um crivo criativo difícil de se medir, e que só com o tempo nota-se como ele foi relevante. Afinal, por mais que insistam em dizer que “é só conteúdo” devido à imensidão de opções dentro do streaming, ninguém cria um filme como Sociedade da Neve ou uma série como Round 6 sem ser um artista. No fundo, por meio de algoritmos e infinitos estudos, a Netflix é hoje um dos meios mais importantes de exportar arte para o mundo todo. Concorde com os termos ou não, os números e o que a empresa prepara para 2025 não deixa muitas dúvidas da eficiência do que foi executado até aqui.
Com informações de Omelete.