A coluna Nordestinados a Ler é publicada toda sexta-feira no jornal Leia Sempre Brasil sempre trazendo textos sobre literatura e cultura. Assinada por Luciana Bessa.
Em 2022, Annie Ernaux, foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura. Neste instante, fui tomada por uma sensação de alegria e de incredulidade.
Confesso: até aquele momento não conhecia a escritora, tampouco sua obra. Mas, saber de que se tratava da primeira escritora francesa a ser premiada pela academia sueca em terras de Victor Hugo (1802-1885), Gustave Flaubert (1821-1880), Marcel Proust (1871-1922), Antoine de Saint Exúpery (1990-1944) é, para mim, um momento único.
Isso sem contar com os franceses que a antecederam contemplados com o Nobel: Anatole France, 1921, Albert Camus, 1957 e Jean-Paul Sartre, 1964, (mesmo o autor de o Ser e o Nada ter recusando a recebê-lo). Agradeço ao universo por estar viva para registrar esse “acontecimento”, para fazer um trocadilho com a obra da autora.
O que me conquistou na escrita de Annie Ernaux, hoje com 85 anos, é a maneira nua, mas não crua com que ela relata os fatos. Suas obras não são romances, ensaios, textos históricos, apologias políticas, ou defesa de uma temática. Talvez seja tudo isso e mais um pouco, através de uma voz e estilos próprios.
O acontecimento (2022) é uma obra curta, característica da autora, mas profunda em suas raízes. O texto se inicia com duas epígrafes: a primeira do escritor e crítico de arte francês, Michel Leris (1901-1990), que diz: “Meu duplo desejo: que o acontecimento se torne escrita. E que a escrita se torne acontecimento”. Não poderia haver uma assertiva mais apropriada para essa narrativa, já que a narradora é categórica ao afirmar: “(…) as coisas aconteceram comigo para que eu as contasse”. A segunda epígrafe é da japonesa Yoku Tsushuma: “Talvez a memória não seja mais do que olhar as coisas até o limite”. É exatamente o que faz Annie Ernaux em todas as suas obras: viver-olhar-registrar.
O acontecimento (2022) narra um aborto clandestino feito por uma jovem universitária, nos idos de 1963, em uma França (Rouen) em que a prática do aborto era considerada um ato criminoso. Somente em 1975 foi promulgada a Lei Simone Veil que despenalizava o aborto.
A autora-narradora-personagem ao descobrir-se grávida de P* (as personagens são reais por isso são identificadas apenas com suas iniciais) tem apenas uma certeza: não querer levar adiante a gestação. O que ela ainda não sabe é (são) a(s) violência(s) a que será submetida para conseguir o seu objetivo.
A autora-narradora-personagem conta-nos que nunca acreditou que “aquilo” poderia “pegar” no seu ventre. Para ela, “No amor e no gozo, não se sentia um corpo intrinsecamente diferente do corpo dos homens”. Eis, então, que ela se torna um corpo clandestino.
Ernaux relata detalhadamente a peregrinação em busca de médicos, pesquisas sobre alguém que conhecesse um outro alguém que tivesse contato de uma “fazedora de anjos” (mulheres aborteiras) e seu confronto diário com a lei: “(…) era impossível determinar se o aborto era impossível porque ruim, ou se era ruim porque proibido. Julgava-se de acordo com a lei; não se julgava a lei”.
Além do medo de não conseguir fazer o aborto, é preciso destacar, ainda, o processo de alienação vivido pela autora-narradora-personagem, já que nesse período de sua vida, o presidente americano, John Fitzgerald Kennedy (1917-1963) fora assassinado. “Mas isso não me despertava nenhum interesse”.
Outro ponto importante nessa narrativa é o fator tempo em busca de resolver “o acontecimento”. “O tempo tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso destruir a todo custo”. A sequência cronológica dos dias preenchidos com “aulas e apresentações, idas a cafés e biblioteca… as férias de verão deixaram de existir”. Ou seja, o tempo tornou-se um inimigo. Não bastasse, o mundo passou a ser um lugar com dois tipos de pessoas: as garotas “com ventres vazios” e “eu”.
O “acontecimento” experenciado por Arnie Ernaux foi mote de que ela precisava para descobrir que queria ser mãe futuramente, para registrar e tornar público todo os fatos vividos, sobretudo, para eliminar a culpa que sentia pelo momento experenciado, pelo fato de ter acontecido com ela e ela “não tenha feito nada com ele. Como um dom recebido e desperdiçado”.
Historicamente, reivindicar a mudança de lei que criminaliza o aborto tem sido uma pauta do movimento feminista há décadas. As forças católicas somaram-se às forças evangélicas e da extrema direita. Enquanto as questões de ordem religiosas forem mais fortes do que às questões de saúde pública, as mulheres seguirão sendo as culpadas por engravidarem e por decidirem interromper a gestação.