22 de novembro de 2024
Fósseis do Ceará eram vendidos em site dos EUA por quase R$22 mil; autoridades investigam caso

Foto: Reprodução/Indiana Fossils

Fósseis de insetos da Chapada do Araripe, no Ceará, estavam sendo comercializados por até US$3,9 mil – cerca de R$21,6 mil, na cotação atual – em uma loja virtual dos Estados Unidos. A prática é criminosa e já chegou ao conhecimento das autoridades, que iniciaram uma investigação sobre o caso. Os anúncios foram removidos, e a página declarou ter guardado os exemplares para contribuir com a repatriação.

A denúncia das vendas foi feita pelo doutor em Geociências e professor do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Juan Carlos Cisneros, ao canal on-line do Ministério Público Federal (MPF), em janeiro de 2023. Em seguida, o caso foi atribuído à Procuradoria da República no Ceará.

O paleontólogo constatou que os fósseis anunciados pela loja Indiana9 Fossils & Prehistoric Fossils – inaugurada em 1997 e baseada na cidade de Branson, no estado do Missouri – são do Período Cretáceo, encontrados na Chapada do Araripe.

Essa é a mesma região a que pertencia o dinossauro ancestral das aves Ubirajara jubatus, contrabandeado para a Alemanha em 1995. Cisneros, inclusive, foi um grande ativista para o retorno do fóssil ao Ceará, concretizado em junho de 2023.

Segundo o pesquisador, em entrevista ao Diário do Nordeste, os valores encontrados no site americano eram “absurdos”: uma cigarra chegava a custar 3,1 mil dólares (R$17,3 mil); uma libélula, 3,9 mil (R$21,6 mil). Ao todo, ele encontrou mais de 200 peças brasileiras à venda.

O problema é que, em 1942 – há mais de 80 anos -, um decreto presidencial tornou ilegal a exportação de todos os fósseis, considerados patrimônio nacional, para fora do País. Ou seja, a negociação deles é crime, a menos que tenham sido retirados legalmente antes de 1942 e estejam acompanhados da documentação da época.

“Vou ter que acreditar que eles vieram fazer uma escavação em 1941”, ironiza Cisneros.

 

Em comunicado publicado no site, após remover os fósseis cearenses do mostruário, a loja afirmou que foi pega de surpresa e que desconhecia a legislação brasileira.

“Uma pessoa que se dedica a esse ramo e não conhece as leis daquilo que está vendendo é muito amadorismo”, entende o paleontólogo. “Eu não acredito nisso. Eles sabem que estão vendendo algo ilegal, mas dão mais importância às leis do seu país do que às nossas. Acham que quebrar a lei do Brasil não tem consequência ao que fazem lá”.

Cisneros atribui isso a uma postura “arrogante” dos vendedores. Essa, inclusive, não é a primeira denúncia do tipo que ele faz, ação que já está na rotina e tem a colaboração de seguidores nas redes sociais. Contudo, “essa é a que abrange maior quantidade de fósseis”.

Diário do Nordeste questionou o MPF-CE, há mais de 15 dias, sobre o andamento das investigações e como funciona a cooperação internacional com as autoridades americanas. Há 11 dias, também entrou em contato com a Polícia Federal, que entrou no caso em junho de 2023, com as mesmas questões. No entanto, não recebeu nenhum posicionamento dos dois órgãos até esta publicação.

Em contato com a reportagem, o proprietário da loja, Merv Feick, informou que está cooperando com as autoridades e que o governo brasileiro acompanha o caso há 9 meses.

“Todos os insetos estão encaixotados e aguardando toda a documentação necessária do seu governo para coletar os espécimes. Além disso, realmente não tenho muito a acrescentar ou dizer”, declarou.

 

 

Fósseis do Cariri

Para se resguardar na denúncia, o cientista fez diversos prints das páginas. Chamou atenção dele que os vendedores “não escondiam de onde tiravam” as peças: todas eram registradas como provenientes de Nova Olinda, no Cariri, derivadas de uma formação geológica chamada Formação Crato. “Eles mesmos deixaram claro que eram fósseis brasileiros, patrimônio brasileiro”, ressalta.

Juan passou a monitorar o andamento da denúncia. Após ser atribuída ao Ceará, ela entrou na fase de cooperação jurídica internacional. “É o que mais demora”, afirma ele, dadas as experiências anteriores. Algum tempo depois, o site suspendeu a venda de todos os fósseis. Hoje, eles constam como “sold out”, ou seja, “esgotados”.

O professor lembra que, atualmente, há maior engajamento de autoridades de todo o mundo nesse tipo de iniciativa, como ocorreu na repatriação de 998 fósseis cearenses – alguns de até 110 milhões de anos – que estavam na França. O processo, concluído em dezembro de 2023, durou uma década. “Isso só para depois de denúncias”, diz.

O que diz a loja americana

Em um longo comunicado postado no site, o proprietário da loja explicou o “sumiço” dos anúncios de insetos sul-americanos e atribuiu o ocorrido a um suposto negociante europeu, que ele conhece “muito bem” e o teria abordado em Tucson (cidade no estado do Arizona).

“Ele me perguntou se eu gostaria de levar uma enorme coleção de insetos do Crato para vender em consignação. Dividiríamos os lucros. Topei a oportunidade de poder oferecer alguns exemplares incríveis aos meus clientes, então é claro que disse sim. Eu os trouxe ao armazém e comecei a publicá-los no meu site”, relata.

Na ocasião, Feick chegou a questionar a regularidade dos insetos, mas o suposto europeu  garantiu que os havia adquirido legalmente e tinha a documentação para provar. Contudo, o americano não confirmou as informações. “Olhando para trás, eu deveria ter pedido para ver aquela papelada”, reconhece.

 

“Recentemente, recebi uma visita surpresa das autoridades que queriam falar comigo sobre a grande quantidade de insetos do Brasil que eu tinha em meu poder. Parece que o Governo brasileiro foi informado do grande repositório e contatou os Governo dos Estados Unidos”, emenda o lojista.

 

O americano informou ainda desconhecer a legislação brasileira. “Se você perguntar à maioria das pessoas que gostam de fósseis, acredita-se que fósseis de invertebrados e vestígios fósseis do Brasil são legais, e os fósseis de vertebrados são ilegais”, defende-se, erroneamente.

 

Após a “visita” das autoridades, o vendedor alega ter entrado novamente em contato com o negociante europeu e solicitou que ele enviasse cópias da documentação brasileira. Contudo, “o que foi enviado de volta para mim parecia ser um monte de documentos inúteis e sem sentido”.

 

“Ficou claro que esses espécimes não foram exportados legalmente para fora do Brasil em nenhum momento”, constatou.

 

O americano afirmou que, no momento, as autoridades estão trabalhando na documentação e provavelmente repatriarão todos os espécimes de volta ao Brasil.

Ele pede ainda que colecionadores fiquem a par de informações sobre leis internacionais sobre o assunto. “É necessário muito mais trabalho para ajudar a combater o que aparentemente se tornou um enorme mercado que opera fora da Europa”, finalizou.

 

 

Valorização da história

Mas por que se importar com os fósseis? O paleontólogo Juan Cisneros cita principalmente os benefícios cultural e educacional. Afinal, “só depois de conhecer é que as pessoas vão valorizar”.

 

Antes da campanha do Ubirajara, muita gente não sabia que tinha dinossauro no Nordeste, no Ceará. Esses objetos representam formas de vida extintas e não são só coisa de filme. São reais e estão mais perto do que imaginam.
Juan Cisneros

Paleontólogo e professor da UFPI

 

Além disso, as exposições podem movimentar a economia. O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, por exemplo, recebe cerca de 2 mil visitantes por mês. Em conta simples, Cisneros lembra que essas pessoas vão comer, se hospedar e gastar combustível na região.

“Tudo isso é renda que fica ali no município graças aos fósseis que estão ali, não na Alemanha ou nos Estados Unidos. A comunidade tem que se beneficiar com esse patrimônio, e esse é o motivo pelo qual estamos nessa luta”, destaca.

Nos últimos anos, a repatriação de fósseis tem ganhado mais visibilidade no país. Em 2021, 36 fósseis cearenses foram repatriados dos Estados Unidos, e outra peça foi recuperada na Itália. No ano passado, foi a vez do Ubirajara jubatus e do conjunto dos quase mil exemplares que estavam na França.

“As autoridades brasileiras estão mais colaborativas e ajudando mais para que esses casos se resolvam. Antes, era mais abstrato fazer com que elas fossem conscientizadas de que esse patrimônio deveria retornar ao Brasil. A partir do Ubirajara, a pauta é mais fácil de entender”, compreende o pesquisador.

 

FONTE: Diario do Nordeste