22 de novembro de 2024
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Em discurso proferido no Palácio do Catete, em 3 de outubro de 1944, Getúlio Vargas afirmava que “só as mentalidades impermeáveis aos ensinamentos dos fatos podem acreditar, ainda, na validade dos princípios do laissez-faire econômico e nos seus corolários políticos”. Por “fatos”, talvez se reportasse a outro outubro, o de 1929, quando a quebra da Bolsa de Valores de Nova York impugnou pela experiência o dogma do mercado autorregulado de Adam Smith. Quiçá, aludisse ao passado colonial do Brasil, da América Latina em geral, presentificado naquilo que, pouco depois de encerrada a Segunda Guerra Mundial, passaria a responder pelo nome de “subdesenvolvimento”. Dando seguimento ao discurso, Vargas mesmo o esclarece: “o combate ao colonialismo econômico é precisamente um dos pontos doutrinários em que todos os brasileiros estão de acordo”.

Ledo engano, senão artimanha discursiva para cooptação. Nem todos os brasileiros estavam de acordo quanto a pôr fim ao colonialismo econômico. Apeado do poder em 1945, Getúlio Vargas retorna ao Palácio do Catete em 1950, “nos braços do povo”, como vaticinara, disposto a retomar seu projeto de desenvolvimento nacional. Sucedia ao general Eurico Gaspar Dutra que, governando embalado pelos tratados de Bretton Woods, torrou divisas importando bens industrializados, perseguiu comunistas, originou a Escola Superior de Guerra e sua paranoia anti vermelha expressa na Doutrina de Segurança Nacional, dentre outras realizações que consumaram a subserviência do Brasil aos interesses dos Estados Unidos da América.

Reassumindo o poder nessas condições, Vargas enfrentou dificuldades inauditas para retomar seu projeto, ainda que, a despeito destas, consiguiu emplacar a criação da Petrobras e entabulou um projeto que, posteriormente, seu herdeiro político João Goulart consubstanciaria na implantação da Eletrobras.

Diferentemente do que afirmara no discurso de 1944, Vargas admitia em suas horas finais a existência endógena de defensores do colonialismo econômico, do qual o trabalho desprovido, ou com exíguas garantias, é um dos elementos basilares. Outro elemento consiste na incapacidade de promover uma industrialização autônoma. O que, na divisão internacional do trabalho, condena países de passado colonial, mesmo após a emancipação política, a seguirem produzindo bens primários para exportação a preços vis.

Uma mirada panorâmica sobre os períodos compreendidos pelos anos de 1930-45 e 1950-54 permite afirmar que Vargas postulou um desenvolvimento industrial brasileiro, soberano, em três etapas – correndo em paralelo a estas a obtenção de autossuficiência energética. A primeira etapa, construção de indústrias de base, logrou êxito, a exemplo da Vale do Rio Doce, criada em 1942 e da Companhia Siderúrgica Nacional, fundada no ano anterior. Getúlio Vargas, avançando em relação a Pero Vaz de Caminha, compreendia que esta terra, para além de gêneros vegetais, poderia fornecer os minérios necessários à produção de emancipação econômica.

Nesse sentido, ao retornar ao Catete nos anos 1950, enunciou a segunda etapa de seu plano. Através da Instrução 70 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito, autoridade monetária criada por Vargas em 1945 e transformada em Banco Central no início do período discricionário implantado em 1964), de 1953, limitavam-se as importações de bens não essenciais e, em contrapartida, orientava-se a indústria nacional a fabricar bens de capital. Em outras palavras, a Instrução 70 induzia a que, uma vez que já possuíamos minério beneficiado por força da siderurgia, em lugar de importar automóveis, caminhões ou geladeiras, o Brasil fabricasse o maquinário para a produção destes bens.

Caso bem-sucedida a segunda etapa, a terceira e última do projeto de desenvolvimento de Getúlio Vargas seria a produção de bens de consumo duráveis. Uma de suas iniciativas, nesse sentido, foi a criação da Fábrica Nacional de Motores, ainda na década de 1940.

As dificuldades, agravadas por lacerdistas-udenistas afeitos ao golpismo, levam o presidente a disparar um tiro contra o próprio coração ao clarear do dia 24 de agosto de 1954, restando junto ao corpo inerte uma Carta-Testamento. Mescla de balanço dos anos no comando do país, prestação de contas ao povo brasileiro e derradeiro desabafo, nas linhas da Carta, Getúlio Vargas aponta “a espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais” e assevera que, ao reassumir a presidência do Brasil, “a campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se às dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho”.

O tiro no coração interrompeu o projeto de desenvolvimento de Getúlio Vargas Após a trágica morte, assume o vice-presidente, Café Filho. “Corolário político do laissez-faire”, o novo mandatário baixa a Instrução 113 da Sumoc, a qual, em termos práticos, revoga a Instrução 70. Determinando a internacionalização da economia brasileira, a nova Instrução permite a entrada livre do capital estrangeiro no Brasil, autoriza investimentos diretos sem cobertura cambial e a importação de máquinas com isenção de impostos.

Vitorioso nas eleições de 1955, Juscelino Kubitschek governa sob a égide da Instrução 113, trazendo para o país montadoras de veículos e outras intrusões de capital do Hemisfério Norte no afã de produzir um tipo de desenvolvimento que, de nacional, guardava tão-somente a denominação. Estas práticas significavam, em termos de política econômica, a experimentação das teses da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948 pela ONU), cujo fracasso na promoção de desenvolvimento econômico mediante a inversão direta de capitais estrangeiros seria demonstrada pela Teoria Marxista da Dependência, a começos dos anos 1960.

Dada a alusão àquela Teoria, será válido mencionar um sociólogo brasileiro, que dela bebeu na fonte e, ato contínuo, atribui-lhe distorções e deformações weberianas. Este sociólogo fez-se presidente do Brasil, em meados da década de 1990. Em que pese a biografia do pai, general nacionalista e deputado trabalhista, o sociólogo-presidente abraçou o legado privatista collorido de um xará que o antecedera no Palácio do Planalto e aperfeiçoou um programa de desestatização imposto pelo Consenso de Washington de 1989. Em seu segundo mês de mandato, ao sancionar uma lei de concessões, conclamou que esta significava “o fim da Era Vargas”. Posteriormente, tanto mais convertido ao neoliberalismo, o sociólogo-presidente, “mentalidade impermeável”, entregou ao mercado a valores escandalosos a Vale do Rio Doce e a Companhia Siderúrgica Nacional.

Nos anos que se seguiram (recorde-se Brumadinho, por exemplo), os “ensinamentos dos fatos” enunciados por Getúlio Vargas desvelaram uma vez mais a perfídia da “maior eficiência” do laissez-faire.

Sobre o autor

Demetrius Ricco Ávila, graduado em Ciências Sociais (UFRGS), mestre em História (PUCRS), doutorando em História (PUCRS), Professor do Instituto Federal Sul-rio-grandense e Secretário de Formação Política do Movimento Cultural Darcy Ribeiro (MCDR)/PDT-RS. Autor do livro Eneida Tropical: O Povo Brasileiro como grande narrativa sobre o Brasil (Class, 2019)