20 de setembro de 2024

Foto: Leonardo Cendamo/AFP

O filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, um dos maiores intelectuais do século XXI, desenvolveu a metáfora da liquidez para introduzir o conceito de sociedade pós-moderna caracterizada pela fluidez, instabilidade, ou sem uma forma definida como um líquido, organizada, majoritariamente, a partir de uma massa de conectados na internet, com potencial para submeter a política e a justiça à tecnologização.

Desse modo, levanta-se a hipótese de que a ordem política e jurídica do Brasil, há pelo menos uma década, vem se inserindo nas ideias baumanianas diante de alguns fenômenos anômalos e efêmeros verificados internamente, de modo que as manifestações, relações e sentimentos humanos estão sendo materializados, frequentemente, por meio de telas eletrônicas.

Demais disso, a cultura do cancelamento, o plebiscito diário on ou off, a miopia ética, a guerra de narrativas e a disseminação de fake news dão forma à sociedade de consumo que dinamiza a lógica neoliberal capitalista, uma vez que os indivíduos buscam a sua identificação, ou realização pessoal, não pelo que são, mas naquilo que podem adquirir ou ostentar.

Nesse cenário, o ódio, a intolerância étnica, jurídica, política e religiosa contra determinadas pessoas ou grupos desprotegidos, ecoam cada vez mais nas telas eletrônicas e se instalam na sociedade, surgindo daí incertezas, instabilidades e, especialmente, o mal líquido, termo conceituado pelo intelectual radicado na Inglaterra,  que na visão de Hannah Arendt, em Homens em tempos sombrios, está havendo uma irritabilidade universal entre os povos por conta da incompreensão e insensatez humana, caso observado entre a esquerda e a extrema-direita do país.

Ainda, no final do século XIX, Machado de Assis usou a sua obra Quincas Borba, em que expôs uma conversa entre os personagens Doutor Camacho e Rubião para tecer um conceito de política, considerando toda a complexidade, idolatria, inconfiabilidade e volubilidade que permeia a temática, ocasião em ponderou o seguinte:

“política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das ideias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão”.

E a proposta debatida é explicada a partir do axioma aristotélico de que o homem é um ser político por natureza e, vivendo em sociedade, é responsável pelos avanços, ou retrocessos, dos povos, mesmo considerando a pluralidade de culturas existentes no planeta e seus conceitos de prosperidade, de forma que o engendramento de recursos tecnológicos, com a finalidade primordial de facilitar o dia a dia dos indivíduos, foi na verdade uma imposição da globalização capitalista para aperfeiçoamento de seu modelo de dominação e exploração.

No contexto avaliado, há outro elemento que ratifica a liquidez das instituições políticas e jurídicas do Brasil: concernente à criação de um inimigo necessário, real ou imaginário, para justificar atos autoritários de determinado grupo político, assunto tratado na obra O conceito do político, de Carl Schmitt, que se refere à qualquer pessoa ou entidade que possa, ideologicamente, ameaçar a homogeneidade de um Estado.

E essa atmosfera problemática impõe uma condição politicamente binária aos brasileiros: ou se é de esquerda ou de direita, de modo que os “neutros” ficam geralmente fora dos holofotes, ou invisíveis nas redes, ou mesmo odiados por ambos os lados porque críticos dos segmentos que polarizam o debate político. Além disso, de acordo com a atual arena política e o sistema partidário brasileiro, não há previsão de pacificação do país, nem mesmo para retornar a níveis moderados ou civilizados de disputa eleitoral, como na época de rivalidade entre PT e PSDB.

Por essas razões, o autor da modernidade líquida sugere que a tecnopolítica se coloca acima da política. É como se aquele político tradicional, nos moldes do prefeito demagogo Odorico Paraguaçu, satirizado pelo baiano Dias Gomes, que costumava praticar o corpo a corpo em suas militâncias eleitorais, necessariamente passasse a maquinar suas malícias pelos meios eletrônicos em direção a eleitores virtuais que vivem em seus casulos domésticos, para não cair no esquecimento e perder a popularidade desejada e, consequentemente, os votos imprescindíveis à (re)eleição.

Noutra seara, diante do ativismo, instabilidade e insegurança judicial verificada no país nos últimos tempos, a justiça brasileira necessita, com máxima brevidade, de se demitir do encargo de necessária pacificadora ou possível solucionadora de questões eminentemente políticas, ou de assumir demandas que fujam de sua alçada institucional, a fim de retomar a sua imagem de poder sério (que impõe respeito), imparcial e equidistante dos contendores, compreendendo a atuação longe de holofotes e de decisões midiáticas.

Ademais, não é somente (ou principalmente) responsabilidade do Judiciário pela harmonia e equilíbrio da vida democrática, mas simbioticamente de todos os poderes e autoridades constituídas. E a sociedade tem que compreender e velar pela divisão de atribuição imposta pela Constituição da República.

À vista da pesquisa produzida neste artigo, desenvolvida com a finalidade de analisar a ordem política e jurídica do país, à luz da ideia de liquidez na pós-modernidade proposta por Zygmunt Bauman, confirmou-se a hipótese de que o Estado Democrático de Direito brasileiro está desfigurado e turbulento, sem uma forma logicamente definida, de maneira que o quadro instável, discrepante com o que foi previsto no Texto Constitucional de 1988, está causando prejuízos à identidade cultural, política e social de seu povo.

Por Jefferson Lopes Custódio – Professor universitário e  doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

(Este artigo pode ser lido integralmente na revista Consultor Jurídico – https://www.conjur.com.br/2024-ago-15/zygmunt-bauman-e-a-liquidez-da-ordempolitico-juridica-brasileira/).

 

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