Ambientado na Itália de 1858, “O Sequestro do Papa” narra a história de Edgardo Mortara, um menino judeu de seis anos, retirado à força de sua família em Bolonha por ordem da Inquisição Católica. Alegando que o menino havia sido secretamente batizado por uma babá.
Há tempos não assistíamos a um filme forte, bem realizado, um filme excepcional abrigado na obra de um dos mais expressivos diretores italianos em atividade. O Sequestro do Papa está chegando aos cinemas nesta quinta-feira (18), e, com certeza já se encontra inscrito na relação dos melhores cartazes cinematográficos de 2024. É de autoria de Marco Bellochio, de 84 anos, um dos mais luminosos expoentes da sua geração, um daqueles artistas da “era dos grandes velhos”, como proclamam os incontáveis admiradores do cineasta.
Rapito é inspirado em uma história real relatada na novela Il caso Mortara, de Daniele Scalise, um drama que foi objeto do desejo cinematográfico de Steve Spielberg. O diretor americano desejou filmar essa saga histórica, há alguns anos, mas não conseguiu concretizar o projeto embora tenha chegado a entrevistar, na época, centenas de atores infantis para interpretar o menino Edgardo, personagem de extrema complexidade que exige sensibilidade e disciplina raras. Nenhum dos testados agradou Spielberg e ele esqueceu o assunto retomado por Bellochio.
O filme conta a trajetória de Edgardo Mortara, um garoto judeu da comunidade da cidade de Bolonha, de sete anos de idade, que em 1858, após ser batizado por uma babá, meio ao acaso, durante uma gripe forte e sem o conhecimento dos pais, foi sequestrado pela polícia do poder papal autoritário, e levado à força para longe da família pelos guardiães religiosos da teocracia dos Estados Pontifícios, administradores de várias regiões da península italiana. Edgardo acabou sendo criado como católico, catequizado, (re)educado em um seminário para exercer o sacerdócio.
A história da luta dos pais de Edgardo para resgatar a criança perdurou por toda a vida da família, tornou-se emblemática e divulgada como ruidoso episódio de uma batalha política mais ampla. Naquele instante histórico o poder autoritário da igreja de Pio IX confrontava as forças democráticas romanas que lutavam pela unificação da Itália. O sequestro foi levado aos tribunais em 1860 e dez anos depois Roma foi capturada.
O mesmo motivo que levou Spielberg a renunciar ao projeto, ou seja, a impossibilidade de encontrar um garoto para fazer o complexo papel de Edgardo, foi positivo para Bellochio que teve sucesso encontrando o menino Enea Sala para fazer o personagem adotado à força pela polícia religiosa com um tom ambíguo e beirando notável perplexidade.
Sobre o menino, diz Bellochio: “Enea Sala nem foi batizado, nunca foi à igreja e também não é judeu! O que ele mostra na tela é sua resposta emocional ao personagem, e ele desempenha o papel conseguindo evitar o que as crianças costumam fazer: imitar o que viram na televisão”.
Edgardo/Sala nos apresenta a luta (que é também de muitos de nós) ao confrontar a “voz do coração” que vem de dentro, a emoção e o sentimento, com a razão, os moldes e a armadura da cultura e da educação, essa decisiva quando provém do ensino religioso que apenas admite as certezas dos dogmas.
Outro ator respeitável nessa produção França/Alemanha, selecionada este ano para concorrer à Palma de Ouro de Cannes, é o conhecido italiano Paolo Pierobon fazendo o sectário Papa Pio IX cujo principal conselheiro era famoso cardeal, que, antes, atuara nos tribunais do Santo Ofício. Mais um excepcional ator, Filippo Timi.
Com o trágico fundo musical de grande orquestra, uma bela trilha original de Fabio Massimo Capogrosso, com uma direção de arte majestosa de Andrea Castorina, o roteiro de Rapito de Marco Bellocchio e Susanna Nicchiarelli é construído em três eixos paralelos: a (re)educação religiosa do menino, a luta dos pais para resgatá-lo e o desespero da mãe dele, e a estratégia desumana do Papa Pio IX com sua hostilidade à religião judaica.
Um detalhe registrado no filme: até pouco antes do ano em que se passa o sequestro de Edgardo, fim do século 19, o gueto dos judeus da cidade de Bolonha era trancado ao anoitecer pela polícia e só reabria na manhã do dia seguinte.
O diretor explica que se inspirou no realismo e no romantismo das pinturas do século 19, no qual se situa a trama. “Foi a época em que a Itália produziu muitas pinturas representando cenas militares e familiares. Em termos de cenários, figurinos, cores e contrastes, inspiramo-nos na grande tradição do pré-impressionismo da pintura italiana e francesa, como na obra de Delacroix“.
Há que observar que o filme de Bellochio vai bem mais além de referências simbólicas a um tema geopolítico imediato e não se relaciona com críticas mais do que justas, da guerra genocida lamentavelmente desfechada pelo atual estado de Israel contra a população palestina da Cisjordânia e, em particuar, da Faixa de Gaza.
“Certamente, o que Eduardo Mortara viveu nunca poderia acontecer hoje, numa época de diálogo aberto e de um papa de mente também extremamente aberta”, Bellochio faz questão de ressaltar. “Naquela época, havia de fato a sensação de que a fé católica não podia ser abalada. Este filme não busca colocar um lado contra o outro. O destino daquele homem me tocou e me inspirou e sua história me encheu de sentimento e tensão. Minha empatia vai claramente para a criança que sofreu um ato de extrema violência”.
O diretor, aos 26 anos de idade, em 1965, revolucionou as vanguardas cinematográficas e empolgou a forte contracultura da época com a obra-prima anticonformista Pugni in Tasca, (De Punhos Cerrados), o seu célebre primeiro longa-metragem que desnudava os podres de uma família de classe média: assassinato, incesto e insanidade.
De Punhos Cerrados recebeu prêmios em Livorno, Veneza, Locarno, no Festival do Rio de Janeiro – onde eram intermináveis as filas de espectadores diante dos cinemas. Depois, Bellochio seguiu sempre posicionado contra regimes teocráticos, contra o poder político discricionário, crítico da burguesia, e sempre colecionando prêmios, também em Berlim e em Cannes. Seus filmes seguintes imediatos, La Cina è vicina (1967) e Il popolo calabrese há rialzato la testa, de 1969, seguiram na mesma direção assim como Noite Exterior (Esterno Notte), sobre o assassinato de Aldo Moro.
Uma retrospectiva Bellochio, hoje, viria no momento certo da antevisão de um mundo que deriva. E o seu recado é claro, em Rapito, originado na bela sequência da mãe de Edgardo vivida por Barbara Ronchi, durante a última noite em que passa com o filho, antes da polícia levá-lo sequestrado. Ela ensina ao menino quase adormecido: “Não esqueça nunca do que diz a voz inscrita no fundo do seu coração”.
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Texto “O Veneno dos Dogmas” da jornalista Léa Maria Aarão Reis
Publicado no site Fórum 21