24 de novembro de 2024

Quando os escravocratas clamam por liberdade

Por Jair de Souza*

Diz o velho ditado popular: “é viver para ver”.

E nós que estamos vivos, em pleno Brasil do ano 2024, temos fundadas razões para estarmos estupefatos com o que anda ocorrendo.

É que, por mais que aspirássemos a acrescentar muitíssimos outros anos a nossas vidas, jamais imaginaríamos que chegaríamos a ver o que estamos vendo.

Porém, o que seria capaz de causar ainda mais espanto em quem já anda contemplando tantas coisas estapafúrdias nos últimos tempos?

É inegável que tem sido uma constante o aflorar de cenas tão incrivelmente contraditórias como a de presenciarmos cruéis pregadores do ódio e da maldade arvorando-se como representantes de Jesus, e não como serviçais do diabo.

Como não se sentir desnorteado por comprovar que nossos “heróis” no combate à corrupção deram mostras de serem na verdade os mais inveterados praticantes da mais abjeta corrupção.

Ou não foi com base nos argumentos de combate à corrupção que a quadrilha da Lava-Jato destruiu boa parte da infraestrutura produtiva do país e desviou bilhões de reais de recursos públicos para uso privado?

O que nos incomodaria ainda mais do que o fato de que, vira e mexe, ficamos sabendo que certas pessoas são perseguidas, criminalizadas e tachadas como antissemitas por iniciativas de instituições e pessoas vinculadas à ideologia mais racista e supremacista dos dias de hoje?

Ou seja, basta alguém levantar a voz contra o sionismo e o monstruoso genocídio que o Estado de Israel está cometendo contra o povo palestino para “merecer” que os sionistas o incluam na categoria de antissemitas.

De igual maneira, é estarrecedor constatar como os maiores entreguistas da pátria gostam de posar de gloriosos patriotas.

Quantas vezes temos nos deparado com gente vestida de verde-amarelo e carregando a bandeira do Brasil para apregoar a entrega de nossas riquezas naturais para o imperialismo?

Sim, falo dessa gente que bate no peito por seu amor à pátria, enquanto propõe a entrega da Petrobrás aos gringos, o desmantelamento de nossa indústria naval e a subordinação total de nosso país aos centros financeiros estrangeiros.

No entanto, como dizem que desgraça pouca é bobagem, entramos numa nova fase de aberrações da hipocrisia.


Agora, estamos vendo como tradicionais apologistas da escravidão vêm a público bradar e clamar por liberdade.

Sim, por incrível que possa parecer, são os senhores de escravos e seus prepostos aqueles que mais reclamam hoje em dia da falta de liberdade.

Quando os patriarcas do bolsonarismo recorrem a um dos maiores bilionários do planeta para encabeçar um protesto contra um pretenso cerceamento de sua liberdade, qual é o significado que devemos atribuir a suas manifestações?

Estariam eles descontentes porque os trabalhadores estão perdendo o direito de se organizarem e lutar por melhores condições de vida?

Ou seria por estarem eles inconformados com os entraves que vêm sendo colocados ao funcionamento dos sindicatos das classes trabalhadoras?

Se enveredarmos um pouquinho pelo caminho da ironia, talvez faça mesmo sentido as queixas dos escravocratas quanto às restrições da liberdade de expressão.

É muito provável que eles indignem ao se darem conta de que há uma pessoa sofrendo muito em função da violação da tal liberdade de expressão.

Sim, os bilionários escravocratas e seus seguidores bolsonaristas certamente devem estar muito preocupados com a implacável perseguição que o establishment estadunidense vem fazendo contra Julian Assange pelo simples fato de ele ter revelado ao mundo os monstruosos crimes de guerra cometidos contra a população civil do Iraque pelas forças ocupantes dos Estados Unidos.

É claro que os bilionários estadunidenses e nossos bolsonaristas estão exigindo que se respeite a famosa Emenda Número 1, e estão cobrando a imediata libertação de Julian Assange. Ou, por ventura, não é nada disto o que está ocorrendo?

E, se não for por isso, os bilionários escravocratas e nossos bolsonaristas podem estar indignados com a massacrante censura que vem sendo imposta a todas as vozes que procuram divulgar visões diferenciadas daquelas emitidas pelos porta-vozes do grande capital imperialista.

Mais do que com certeza, eles não aceitam que todos os meios de comunicação russos tenham sido banidos da Europa, dos Estados Unidos e das redes digitais que eles controlam.

Eles também não devem aceitar de modo algum que se continue praticando a mais descarada censura a todos os meios e pessoas que ousem se manifestar contra os monstruosos crimes do sionismo israelense e seu genocídio contra o povo palestino.

Se não forem estas as razões que estão levando os bilionários escravocratas e os bolsonaristas a protestar por falta de liberdade, quais outras motivações poderiam estar por trás de sua atuação?

Para poupar aos leitores longos e angustiosos momentos de reflexão, eu mesmo vou oferecer as respostas buscadas.

Para os bilionários escravocratas e os seguidores de sua filosofia, dentre os quais, no Brasil, os bolsonaristas se destacam, o único e sagrado direito, aquele que deve sempre prevalecer sobre todos e quaisquer outros, inclusive sobre o direito à vida, é o de PROPRIEDADE.

Ou seja, para eles, o poder para exercer em sua plenitude a posse e o usufruto de bens está acima de quaisquer outros valores imagináveis.

Contudo, não vamos nos precipitar, esse direito à propriedade existe e é sagrado (para os que defendem esta tese, evidentemente), mas não é um direito que se estende a todo mundo e a todas as condições.

O direito de propriedade só é legítimo para quem faz jus ao mesmo. Se isto não ficar bem esclarecido, qualquer camponesinho que detenha uma parcelinha de terra onde cultiva para sua subsistência vai se achar imbuído deste direito e considerar que sua terrinha é intocável.

Não, absolutamente, não! O direito de propriedade não existe para atender esse tipo de pessoas. Não podemos confundi-las com aqueles que possuem milhares de hectares, que são beneficiários naturais do sagrado direito de propriedade.

Por ser a propriedade um direito sagrado, também deve ser considerado sagrado o direito de poder defendê-la.

E como rifles e outras armas de fogo são itens indispensáveis para garantir que a propriedade não sofra ataques, os bilionários e os bolsonaristas advogam pelo sagrado direito de o cidadão possuir e portar suas armas.

Todavia, mais uma vez, não podemos cair na besteira de acreditar que isso se estende aos trabalhadores comuns, para gente, por exemplo, que more numa favela.

Com relação aos sujeitos deste último grupo que venham a ser pegos com alguma arma, a forma de encarar a questão já foi determinada há muito tempo: é tiro na cabecinha dos ditos cujos, e acabou.

Ser proprietário de armas é um direito sagrado, mas só alguns estão aptos a tal sacralidade. Não é coisa para qualquer pé-rapado.

E este sacrossanto direito se aplica também para o corpo humano. Cada um deve ter o direito de fazer o que bem quiser com seu próprio corpo. Ninguém pode ser forçado a tomar uma vacina contra sua própria vontade. O corpo é dele e ele toma se quiser.

Não tem nenhuma importância isso de impedir o contágio, etc. Cada um que se cuide por sua conta. E por ser isso algo tão sagrado, até as igrejas bolsonaristas o assumiram.

No entanto, as igrejas bolsonaristas alertam: nada de querer ultrapassar os limites nessa questão de direito total de propriedade sobre seu próprio corpo. Senão, daqui a pouco vai aparecer gente insinuando que uma mulher pode decidir se faz ou não um aborto, já que se trata de seu próprio corpo.

Um absurdo, não é mesmo?

A menos, claro, que seja alguma esposa, filha ou parente de pastor bolsonarista, ou alguma mulher dotada de recursos econômicos suficientes para ir a uma boa e discreta clínica, dessas que oferecem um bom serviço médico por um bom pagamento e não ficam abrindo a boca no mundo.

Os bilionários escravocratas que andam clamando por liberdade são como os pastores-empresários bolsonaristas, que querem que as igrejas de sua propriedade sejam consideradas o verdadeiro caminho para chegar a Deus, mas se dedicam principalmente a promover o ódio e a maldade e a pregar em favor de tudo aquilo que Jesus combatia em sua passagem junto à humanidade.

Ou seja, são hipócritas e farsantes em todos os sentidos!

Em resumo, espero que esta tentativa de abordar um problema tão sério através do uso da ironia tenha alcançado seu objetivo: alertar a todos os patriotas de verdade dos riscos que a nação está correndo diante da agressão concatenada que está sofrendo de parte do poder do grande capital imperialista e de seus “quintas-colunas” no interior de nosso país.

*Jair de Souza é economista e mestre em linguística pela UFRJ.