No último dia 4 de outubro, Dia de São Francisco, considerado o padroeiro da ecologia (tanto por católicos quanto por ateus), o Papa Francisco (admirado tanto por católicos quanto por ateus), lançou o que ele chamou de segunda parte da Encíclica Laudato Si’, publicada com ampla repercussão há oito anos. O novo texto, intitulado Laudato Deum, é mais um documento que manifesta a grande preocupação do pontífice com o agravamento das questões climáticas. O problema, segundo o Papa, é que pouco tem sido feito para evitar o colapso ambiental – ao contrário, nota-se diariamente o agravamento de todos os índices que indicam que a Terra já não suporta o atual modelo de civilização, que já tem pelo menos cinco séculos de depredação dos recursos naturais. Nesse ponto, o Papa é enfático: “dou-me conta de que não estamos reagindo de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando dum ponto de ruptura”, escreve o pontífice, não para criar pânico, mas para mobilizar todas as forças sociais em defesa da vida. Ninguém há de fechar os ouvidos para a verdade dessa afirmação: é fato que, embora nos últimos anos tenha crescido a consciência a respeito do que está acontecendo, pouco ou quase nada de relevante tem sido feito para impedir essa “ruptura”, que é um conceito amplamente utilizado para medir a ultrapassagem dos limites naturais indicando mudanças irreversíveis no equilíbrio ecológico mundial. Olhando ao nosso redor, não é difícil de compreender os sinais. Estamos, afinal, no Antropoceno, a era em que o ser humano se tornou uma força geológica, ou seja, uma presença violadora da ordem natural.
Ao usar o conceito de “ruptura”, portanto, o Papa se alia a estudos de inúmeros cientistas, como o sueco Johan Rockström, do Centro de Resiliência de Estocolmo, para quem estamos muito próximos de quebrar definitivamente esse equilíbrio e impedir que a Terra continue digerindo os danos da nossa presença. Segundo as pesquisas do grupo de Estocolmo, já cruzamos quatro desses limites (mudanças climáticas, integridade da bioesfera, mudança de uso do solo e fluxo de bioquímicos), estamos dentro da zona de perigo em relação a três deles e temos dúvidas em relação a outros dois. Em junho desse ano, esse grupo, que é formado por mais de 40 cientistas, publicou um artigo na renomada revista Nature, afirmando que pelo menos sete desses limites já estão acima da linha de segurança.
Sabemos que isso não é tudo o que se tem a dizer sobre o problema. A verdadeira história é contada pelas populações mais pobres, dos países mais vulneráveis, que são os primeiros a serem impactados pelas tragédias, os que têm mais dificuldade para enfrentá-las e os que mais demoram a se reerguer. O nome disso é justiça climática e seu debate é também urgente: é preciso que os países ricos (os mais responsáveis pela crise) contribuam para que os países pobres possam enfrentar a emergência. Dados levantados pelo antropólogo econômico Jason Hickel mostram que os países abastados do Norte global são responsáveis por 92% de todas as emissões que levaram à superação dos limites e contribuem para a crise climática, enquanto os países pobres do Sul global pagam de 82% a 92% dos custos econômicos do colapso do clima e acumulam nada menos do que 98% a 99% das mortes associadas às mudanças climáticas. Os dados – assustadores – foram publicados no recente livro organizado por Greta Thunberg, O livro do clima. O que diz o Papa, portanto, se junta ao que afirma Greta: “Não há no mundo nenhuma outra história tão importante, e ela precisa ser contada até onde nossas vozes chegarem, e muito além”. O Papa sabe que precisa começar pelas Igrejas, pelas Escolas e Universidades Católicas, pelos seminários e conventos… para irradiar, a partir daí, uma mensagem que comova e desperte o mundo todo. O Papa sabe que não há missão mais urgente para a Igreja. Como uma vez afirmou o saudoso bispo Pedro Casaldáliga na Agenda LatinoAmericana, “ou a Igreja será ecológica, ou não será”. “Chegou a hora de narrar essa história para mudar o seu final”, escreveu Greta. E essa é a história de um “pecado estrutural”, acrescentou o Papa, bradando contra a ignorância, a desinformação e a má-fé de quem nega o óbvio: a situação é cada vez mais grave, e sim, os fatores são antrópicos (os seres humanos são os responsáveis). Ponto final. É isso que explica afirmações papais como essa: “Por muito que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais da mudança climática impõem-se-nos de forma cada vez mais evidente.”
Existe uma importância civilizatória imensa nessas palavras: todos sabemos que o cristianismo e uma certa teologia nascida de seus claustros úmidos, podem ser considerados também responsáveis por essa crise. Juntando-se a uma tendência que remete às teorias que emergiram já no mundo antigo na forma de um dualismo antropocêntrico, certos cristãos defenderam, ao longo do tempo, a ideia de que (só) o homem era feito à imagem e semelhança de Deus e que todo o resto estava à disposição de seu domínio. Não tardou para que essa visão corroesse também as práticas científicas da modernidade e azeitasse as engrenagens da tecnologia desde o século XVII: o mundo, afinal, é apenas a ocasião do exercício do poder humano de dominação, uma res extensa, como afirmou Descartes, incluindo todos os animais e plantas entre as coisas destituídas de dignidade e valor em si. O resultado desse tipo de posição é a crise climática: tendo destituído a natureza de qualquer tipo de sacralidade e dignidade (ao contrário do que fizeram muitas culturas tradicionais, vale lembrar), o ocidente abriu o mundo para modelos de produção e consumo que hoje se mostram inviáveis. Mesmo assim, continuamos cortando o galho sobre o qual estamos sentados, como advertiu outra voz que, desde a década de 1970, também narrou essa história, o filósofo alemão Hans Jonas.
O Papa Francisco está realmente empenhado em consertar esses erros. Não apenas teologicamente, mas sobretudo, ética e politicamente. Por isso ele empresta sua voz para essa causa e resgata da tradição ideias e personagens como o do santo que lhe empresta o nome, para mostrar que dentro do cristianismo – e mesmo à margem de certo cristianismo hegemônico – há vozes dissidentes, cuja vida é inspiradora e cujo testemunho evoca outras esperanças para a Igreja e para o mundo, para os fiéis e os ateus. Essa é uma tarefa comum, como afirma o título de um livro que acabamos de lançar, resgatando a afirmação de Edward Wilson, no seu livro A criação, que escreve a um pastor dizendo que ambos estavam em lados distintos da história (um acreditava em Deus e outro não), mas que ambos tinham uma tarefa comum: cuidar da criação.
É essa consciência que torna o texto papal tão importante e é a evidência dos fatos que exige da igreja, dos cristãos e de todos os seres humanos nesse momento, uma tal consciência que leve a uma mudança radical no estilo de vida. Entramos, definitivamente, naquilo que Hans Jonas chamou de era de sacrifícios. Todos estamos convidados a sacrificar parte de nosso conforto e de nossa comodidade. Todos precisamos racionalizar as nossas vidas e envidar esforços cotidianos para impedir que o pior aconteça. Quem não pode fazer grandes coisas, que comece pelas pequenas transformações cotidianas, como diminuir o consumo de carne, andar mais de bicicleta, separar adequadamente o lixo etc. O Papa conclama as famílias a “poluir menos, reduzir os esbanjamentos, consumir de forma sensata” porque isso “alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos”. Isso é importante porque é educativo. É uma forma de “comunicar a urgência” para, a partir daí, estarmos capacitados para participar politicamente do debate e empreender iniciativas de maior impacto. Também aqui, para o Papa, para Greta, para Jonas e para cada um de nós vale a máxima: se cada um fizer a sua parte, ainda haverá esperança.
*Jelson Oliveira é doutor em Filosofia e professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).