
COLUNA NORDESTINADOS A LER
Por Luciana Bessa
Publicado postumamente, Encarnação (1893), que tematiza a vida da corte do Brasil no século XIX, é o último romance urbano escrito pelo cearense José de Alencar, cuja trama nos remete à obra A Sucessora (1934), da escritora carioca Carolina Nabuco.
Em A Sucessora (1934), a personagem Marina casa-se com o milionário Roberto Steen. Ao se mudar para sua nova casa, depara-se com um imponente retrato de Alice, falecida esposa de Roberto, e precisa conviver com o fantasma dela.
Na narrativa alencarina, a protagonista Amália, segunda esposa de Carlos Hermano de Aguiar, também precisa conviver com o fantasma de Julieta, primeiro amor do marido, morta três anos após o casamento, vítima de um aborto espontâneo.
O tema da narrativa é justamente o “embate entre a segunda esposa e a primeira esposa falecida, mas ainda reinante dentro do lar e […] no coração do marido”. Amália casa-se com Hermano em segundas núpcias, mas ao olhar para ela, o marido pensa e sente a presença de Julieta em seu corpo e na casa onde moram. É um ambiente soturno, onde até mesmo os empregados não consideram Amália como a nova senhora da propriedade.
Quando penso no vocábulo encarnação, lembro do conceito religioso presente no Cristianismo, já que na Bíblia, por exemplo, lemos em João 1:14 e I Timóteo 3:16, que Jesus Cristo “veio da carne” e Ele foi “manifesto na carne”. “Nos raptos da imaginação” de Hermano, ele via as duas esposas que se uniam estreitamente e “fundiam-se em uma só massa vaporosa”, uma Julieta-Amália.
Estamos diante um romance que traz à tona o amor exacerbado, o ultrarromantismo, o morrer de/por amor. É um texto curto, dividido em vinte e um pequenos capítulos que, no primeiro instante, parece ser uma narrativa aos moldes de Cinco Minutos (1856), A Viuvinha (1857), Diva (1864), etc.
Ledo engano. São muitas as diferenças: 1) Julieta, além de não ter um dote, era uma mulher desprovida de plasticidade, ou seja, sem beleza. Filha de um coronel reformado (Abreu), ela não suspirava pelo casamento. Foi Hermano quem se apaixonou por ela, por sua voz, quando a viu cantando pela primeira vez uma ária de Lúcia Lammermoor – que conta a história de uma donzela que enlouquece e morre de amor – ópera de Caetano Donizzete. Quando Hermano a pede em casamento, ela suspira e no lugar do “sim”, responde: “O casamento é uma fatalidade. Meu marido há de pertencer-me de corpo e alma. Para sempre e eternamente”.
2) É Hermano quem sofre de/por amor pela ausência da mulher amada e não o contrário. Não suportando a dor, tenta em vão o suicídio.
3) Era comum aos homens casaram-se em segundas núpcias no século XIX. Não foi o caso de Hermano. Fechou-se em si e dentro de casa. Não recebia visitas. Falava com raras pessoas, quando uma vez por mês, ia à cidade tratar de negócios. Ganhou fama de louco por seu comportamento ensimesmado. A paixão por Julieta fez com que trouxesse da Europa, em um caixão, uma estátua dela. Conservava o toucador, aposento em que Julieta se vestia e se penteava, intacto com todos os seus objetos pessoais.
4) Amália, uma “bonita moça de dezoito anos, corada como a aurora e loura como o sol”, rica e cortejada, “não pensava em escolher um dentre tantos apaixonados, que a cercavam”, embora soubesse que era “uma solução natural para o outono da mulher”. O amor para ela só existia nos romances. Em sua concepção, as mulheres, após terem “gozado da mocidade”, teriam que “pagar o tributo à sociedade”, isto é, “escolher um marido, fazer-se dona de casa, e rever nos filhos a sua beleza desvanecida”.
5) Amália muda de opinião ao conhecer Hermano. Sente a necessidade de ser amada e adorada por ele, tal como foi Julieta um dia. Casam-se, não têm a noite de núpcias, pois Hermano teme macular a memória da primeira esposa, e depois de uma semana, ele volta-se para si. Ela à princípio pensa em se separar, mas, seu amor fala mais alto e ela luta com todas as suas forças para salvar seu casamento.
6) Os pais de Amália não arranjaram um casamento para ela, como era costume da época. Pelo contrário: “(…) reconheciam, ao mesmo tempo, que formosa, rica e prendada como era, a filha tinha o direito de ser exigente; e confiavam no futuro”.
7) Amália não é uma personagem linear. No início da narrativa, ela é descrita como uma jovem zombeteira, irônica e sarcástica, principalmente, quando se falava em casamento. Uma típica mulher machadiana. Ao final, uma mulher romântica que luta pelo amor de um homem.
Em Encarnação (1893), José de Alencar aborda o amor na perspectiva masculina e feminina. Ele cria homens e mulheres completamente apaixonados e entregues ao bem maior: a família. Como em seus outros romances, discute temas como a fidelidade, o casamento e o amor romântico/ultrarromântico.