
A família, como é sabido, é o primeiro e o principal grupo familiar que nós humanos integramos. É preciso divisar a família que temos e a família que desejamos. Essa instituição, espaço de contradições, conflitos e harmonia, ao longo dos séculos, tem sido defendida pela Igreja, pelo Estado, sobremaneira, por seus membros para manter um status quo social. Para mantê-la intacta já foram cometidas inúmeras atrocidades, na realidade ou na ficção.
Na esteira dessa temática, há o livro Laços de Família, publicado em 1960, (Prêmio Jabuti), da escritora Clarice Lispector. Trata-se de uma coletânea de 13 contos (12 narrados em 1ª pessoa e 1, “O Jantar”, narrado em 3ª pessoa). Na concepção de Érico Veríssimo, autor de Olhai os Lírios do Campo (1938), estamos diante do “mais importante coleção de histórias publicadas neste país na era pós-machadiana”.
Todos os textos se interligam através de uma temática comum a quase a todos: o desenvolvimento familiar. As personagens da obra são na sua maioria mulheres, donas de casa, (Ana, Catarina…), pessoas comuns, massacradas pelo cotidiano exigente de cuidar dos filhos e do marido e, dessa forma, manter a “raiz firme das coisas”.
Lispector é uma das escritoras brasileiras que questiona, de forma peculiar, a condição do ser e da sociedade à sua volta. A leitura de Laços de Família (1960) possibilita que o leitor reflita sobre a identidade do sujeito, já que retrata a mulher branca, dona de casa, de classe média, que ora não se reconhece na condição de filha, mãe e esposa.
Stuart Hall em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade (2011) reconhece que o conceito de “identidade” é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea. Logo, é difícil oferecer afirmações conclusivas ou emitir algum tipo de julgamento seguro sobre o tema em questão. Isso por que no final do século XIX a sociedade moderna começou a se transformar. Esse fato gerou uma fragmentação nos gêneros, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, no conceito de família, de casamento, da própria obra de Arte etc.
As identidades outrora estabilizadas acabam por desestabilizar-se, tornando o indivíduo moderno descentralizado e fragmentado. Para Hall, estamos na era da “crise de identidade”. O conceito de sujeito estável, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e ação, “Sujeito do Iluminismo”, agora em contato com diferentes identidades, torna-se instável, fragmentado, contraditório. Eis que surge o “Sujeito Pós-Moderno”, aquele dotado de várias identidades, algumas contraditórias e não-resolvida, logo, sem uma identidade fixa, essencial ou permanente. Quem nunca se mostrou contraditório em suas falas, atos, teorias e discursos que atire a primeira pedra?
A mulher, por exemplo, assume várias identidades: mãe, filha, avó, tia, amiga, companheira, amante, etc. É o caso da personagem Ana do conto recheado de metáforas “O Amor”, que compõe Laços de Família (1960).
Trata-se de uma dona de casa que vive uma vida rotineiramente, como cuidar dos filhos, da casa e do marido. Aná é um sujeito que vestiu o estereótipo de “rainha do lar” e se esqueceu de si mesma para se concentrar apenas na família. Até o momento que, dentro do bonde em que estava, ela avista um cego mascando chicletes. Tal imagem provoca uma epifania, palavra do grego, epiphanéia, significando literalmente: “manifestação” ou “aparição”. A partir desse instante, vem à tona ideias e pensamentos que Ana guarda a sete chaves em seu inconsciente por temer sair de sua zona de conforto.
Ao mesmo tempo em que anseia libertar-se da mesmice, ela deseja e teme mudanças para sua vida onde ela poderia se auto afirmar e ser sujeito de sua própria existência, sem ficar presa aos padrões e convenções da época.
Ana teme, por exemplo, o período da tarde, quando o sol alto, cada membro de sua família encontra-se distribuído em suas funções. “Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles”. Em outras palavras, Ana vive o que Hall denominou de “Crise de Identidade”.
Em suma, Laços de Família (1960), cujas personagens são autorreflexivas e encontram-se em constantes crises. Além disso, o texto foca no cotidiano, é fragmentado, as frases são turvas, repletas de metáforas do mundo animal e vegetal que descrevem mulheres perdidas em casamentos aparentemente perfeitos. Clarice Lispector, através de suas personagens, leva-nos a pensar que nossos ‘laços de família’ são tênues, frágeis e corroídos.