COLUNA NORDESTINADOS A LER
POR LUCIANA BESSA
Publicado pela primeira vez em 1997, A Vergonha, é o sexto livro que compõe o projeto literário da escritora francesa Annie Ernaux, que tem o objetivo de vingar sua raça, especialmente, investigar sua própria existência sob o prisma social. Nobel de literatura no ano de 2024, aos 82 anos de idade, graças a sua “coragem e acuidade clínica com que descobre raízes, os distanciamentos e as restrições coletivas da memória pessoal”. Coragem e ousadia são duas palavras que vestem bem autora e obra.
O livro traz uma epígrafe do escritor norte-americano Paul Auster retirada da obra A invenção da solidão (1982): “A linguagem não é a verdade. Ela é a nossa forma de existir no universo”. Ernaux afirmará em A escrita como faca (2023) que se apropriar da linguagem foi a forma que ela encontrou “para reparar a injustiça social de nascença”, já que nasceu mulher, foi deslegitimada por uma sociedade misógina, enfrentou preconceitos e precisou trabalhar arduamente para o seu sustento.
Em A Vergonha (1997), há um episódio de violência doméstica do pai contra a mãe. De modo direto e cortante, a narradora diz: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”. Ernaux relata que esse acontecimento se deu no dia 15 de junho de 1952. A primeira data “precisa e clara” de sua infância. Tempos depois, ela contou esse fato para alguns homens como uma forma de confessar seu amor por eles, mas todos ficaram mudos. Ela se dava conta de ter “cometido um erro”: (…) “eles não tinham condições de ouvir uma coisa dessas”. A narradora confessa que demorou para descrever essa cena pela primeira vez, até mesmo em seu diário pessoal. Só depois de ter conseguido registrar esse relato, ela passou ter “a impressão de que se trata de um acontecimento banal, algo que ocorre nas famílias com mais frequência do que eu pensava”. Infelizmente, Ernaux está coberta de razão. Na França, o número de denúncias de violência aumentou 282%, entre 2018 e 2022.
Esse lamentável episódio de violência desperta na escritora a “hiperconsciência de si”, dos costumes, e de sua condição social como filha de pequenos comerciantes na cidade de Yvetot (Normandia).
Na tentativa de fechar o ciclo da infância, Ernaux escreve A Vergonha (1997). Seu principal recurso: a memória. Contudo, “Antes de começar a escrever, achava que seria capaz de me lembrar de todos os detalhes…. Não sei mais qual foi a origem da briga…”. Nenhuma lembrança precisa, a não ser a mesma rotina dos domingos: missa, ida à confeitaria e o uso do vestido azul de bolinhas brancas: “é o vestido daquele dia”. A memória é precária. Os detalhes foram esquecidos; a dor, a vergonha, não. Depois daquele fatídico domingo de 1952, nada mais foi como antes, embora Ernaux continuasse “brincando, lendo, agindo como antes, mas de algum modo estava ausente”. A infância foi fraturada.
Em A Vergonha (1997), além da violência doméstica, Ernaux traz à tona a questão da inferioridade de classe. Pela manhã, ele frequentava o mundo burguês: escola religiosa particular, onde tinha que se submeter a certas exigências para parecer, aos olhos dos outros, alguém exemplar. Por isso, conclui que “aquilo” (o pai tentar matar a mãe) não “podia ser dito a ninguém, em nenhum dos seus dois mundos”. À tarde, voltava a ser a filha dos donos do café-mercearia, vivendo no meio de “todo mundo” (clientela). Uma infância sem privacidade: “Eles nos veem comer, ir à missa, à escola, escutam-nos quando nos lavamos num canto da cozinha ou usamos o urinol”. A narradora confessa que estar exposta dessa forma, obrigou-a desde cedo a ter uma conduta ilibada (…) “(não se insultar, não dizer palavrões, nem falar mal dos outros)”. A infração a qualquer uma dessa regras era punida com a frase: “você vai nos fazer perder os clientes”, ou seja, ir à falência.
A vergonha de Ernaux não é só pela violência do pai contra a mãe, mas pela vida de aparência que ela levou durante muitos anos: no café-mercearia (proletária), na escola particular (burguesa), sem poder expressar opiniões, ou sentimentos, ou ser aquilo que se é. “A vergonha se tornou, para mim, um modo de vida. No fim das contas, já nem percebia sua presença, ela estava em meu próprio corpo”.