Nascemos para a morte segundo a filosofia do alemão Martin Heidegger. Partindo dessa premissa, a então atriz Fernanda Torres enveredou-se pelo universo literário com o romance Fim (2013), obra de estreia. Trata-se de um romance que tem cheiro e sabor de finitude.
A narrativa gira em torno de um grupo de cinco amigos cariocas “de longa data” complementarmente diferentes uns dos outros, mas unidos pelas farras, orgias, traições, bebedeiras, taras, uso de drogas e de viagra. A obra é, na verdade, uma gangorra entre a pulsão de vida (Eros ou sexual) e a pulsão de morte (agressão, Tânatos), já que somos sujeitos de libido. Ambas as pulsões estão sempre juntas segundo o princípio de conservação da vida.
O cenário da narrativa é o Rio de Janeiro das décadas de 1960-1970, um período atípico para a história do Brasil. É preciso recuar no tempo para dizer o início dos anos 60 foi marcado pelo lirismo das manifestações culturais. Contudo, em 64, a inocência foi perdida com o Golpe Militar, regime ditatorial que se estendeu no Brasil até 1985, marcado pela repressão, censura, violência e protestos contra o governo.
Os movimentos em torno do feminismo (segunda onda), dos negros e dos homossexuais, a propagação das drogas, da contracultura, a liberdade moral e sexual faz com que a juventude começasse a contestar a ordem social e moral vigente. O apogeu dessa efervescência culmina no Maio de 1968, símbolo de uma das maiores mobilizações estudantis mundiais, que iniciou na França e se estendeu no mundo inteiro.
Esse é o contexto do qual partiu Fernanda Torres para reunir cinco amigos “sem qualidades”, já que “o ápice da terceira idade são os cinco minutos antes de morrer”, segundo à autora. Embora tenhamos um forte contexto social e histórico como pano de fundo, em Fim (2013) os conflitos brotam da própria natureza humana: desejos, abandono, loucura, patologias, traição, esquecimento, taras, frustações, neuroses, ressentimentos, velhice, etc. A obra, inclusive, é dedicada aos velhos da autora: “João Ubaldo Ribeiro, Domingos de Oliveira, Mário Sergio Conti, Luiz Schwarcz”, além do próprio irmão e do pai.
A obra nasceu de uma encomenda feita pelo cineasta Fernando Meirelles, projeto sobre a terceira idade chamado “Os experientes”, a alguns escritores, dentre eles, Fernanda Torres que já escrevia crônicas para as revistas Piauí e Veja (Rio). Inicialmente, Fernanda escreveu um conto chamado “Álvaro”. A editora Companhia das Letras achou que o texto tinha potencial e nasceu Fim (2013). Quase dez anos depois (2023), prestes a encerrar o contrato com a Rede Globo, Fernanda propôs ao diretor José Luiz Villamarim, que o livro fosse adaptado para a Tv, já que ela via um aspecto folhetinesco no texto.
Na visão da autora, em entrevista ao programa “Roda Viva”, o livro é mais “cínico”, a série, mais “trágica”. Além disso, as mulheres ganham um maior protagonismo, pois no livro “elas ficam mais escondidas”. Interessante notar que a autora usa a terceira pessoa para falar delas, para se distanciar de seu próprio gênero, e a primeira pessoa para narrar os homens. E embora tenha esse aspecto funesto e sinistro presente na obra, Fernanda destaca que não há “um tiro, um revólver” em toda a narrativa.
Fim (2013) é um catalisador de instintos imperfeitos, instáveis e bizarros a começar por: 1) Álvaro, de essência solitária, defendia a máxima: “O casamento é um estado civil mais indicado para homens que, como eu, não gostam de conviver com o outro”; 2) Sílvio – amargurado, viciado em sexo e cocaína, transgressor sexual, um típico representante dos ensinamentos do Marques de Sade; 3) Ribeiro – um rato de praia bonito e atlético, que se envolvia com moças bem mais jovens. Seu grande amor casou-se com outro homem; 4) Ciro – o Don Juan da turma. Bonito, bem sucedido, casado com Ruth, a mulher dos sonhos de Ribeiro, foi o primeiro a partir desse plano, vítima de um câncer. Mesmo às portas da morte tenta seduzir Maria Clara, sua enfermeira; 5) Neto – o “certinho” da turma, marido e pai fiel até o seu último suspiro. Cada um dos personagens corresponde a um capítulo do livro. Nele, há a data de nascimento e de morte, uma espécie de lápide.
A lista das personagens é extensa se contarmos com o Padre Graça e as mulheres, esposas, mães que permeiam a narrativa: Irene, Suzana, Raquel, Alda, Ruth, Célia, entre outras. Cada uma dela com sonhos, desejos e frustrações.
Fim (2013) é a não romantização do processo morte-morrer. É um convite a pensar na libido, no erotismo, nos conflitos, no desamparo de existir, nas projeções pensadas para a vida e a realidade com a chegada da indesejada das gentes, a morte.
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