14 de novembro de 2024
Os provisórios, de Helena Parente Cunha

Foto: Reprodução

A baiana Helena Parente Cunha (1930-2023) é detentora de uma obra múltipla: cinco livros de poemas, quatro livros de contos, três romances, um infantil e quatro livros de ensaios, com destaque para Aspectos da Literatura de Autoria Feminina na Prosa e Poesia (anos 70 e 80), publicado em 1999.

Aclamada na poesia, Helena, “aquela que ilumina”, na década de 1980, publicou o livro de contos Os Provisórios, com trinta textos em uma linguagem fluída, oral e ritmada, cujas personagens centrais são (a maioria) mulheres, com histórias marcadas pelo interditos, pelo controle paterno (“O pai”), violência doméstica (“O olho roxo”), ruptura feminista (“Festa de casamento”), amor obsessivo (“Amor de filha”), relação tóxica (“O triângulo mais que perfeito”), subserviência (“A funcionária”), fim de relacionamento (“Tragédia”), assim como a vulnerabilidade social de sujeitos, independemente de sexo ou de cor, tal qual nos contos “Os provisórios” e “O garagista”.

O primeiro, que dá título ao livro, são pessoas marginalizadas e invisibilizadas por uma sociedade que coloca os sujeitos em dois grupos bem distintos: opressores e oprimidos. Estes são “essenciais, num canto maior do calçadão…”. Ou seja, para a engrenagem social funcionar é necessário que eles existam. A vulnerabilidade social não escolhe cor nem gênero: “o ombro-de-colado-ao- ombro-dela, ele subitamente preto” (…) “o branco da pele [dela] se perdera na neutralidade do encardido (…)”. Logo, todos vivenciam a dor, o sofrimento e a privação.

Quando pensamos em algo provisório, imaginamos a efemeridade da existência, assim como na fragilidade de quem somos e das nossas relações, como pode ser observado nos textos que levam nome de mulheres: “Maria das Dores” e “Julieta”.

O segundo, “O garagista”, encontramos Valfrido, um homem explorado pelos moradores de um condomínio, que não conseguem enxergá-lo como um pai de família com três crianças para sustentar: “Valfrido, eu vou sair de manhã muito cedo, não se esqueça de deixar meu carro bem na frente. Valfrido, você não me escutou buzinado? como é que posso sair com essa porra aí na minha frente me atravancando?” Valfrido é um serviçal disponível 24 horas para os condôminos, quando isso não acontece, ele é substituído como uma peça de um maquinário: “Agora eu não sei mais onde Valfrido está”.

Outro ponto a ser destacado na obra é a escolha de recursos técnicos adotados por Helena Parente Cunha, como o automatismo verbal, presente no conto “O diretor”: “Por favor, diretor. Com licença. Está muito bem. Sim. Sim, senhor. Sim senhor. Muito obrigado (a)”. Há, ainda, o fluxo de consciência e o monólogo interior presente no texto “O triângulo mais que perfeito”, em que a esposa, dependente emocionalmente, não consegue abandonar o marido, que já tem outro relacionamento: “(…) eu sempre à espera de uma hora que não sabia se seria (…) à espera de uma hora que hora? que dia? como seria? seria? (…)”.

O que Helena Parente Cunha faz com o tempo é interessante se pensarmos que para evitar monotonia textual, ela usa a simultaneidade de vozes dentro de uma mesma narrativa, como em “Noite de núpcias”, “A homenagem” e em “O pai”. Neste, que é o primeiro conto da obra, um pai vale-se de sua autoridade para controlar a vida da filha: “O pai parado na porta, entre o triângulo e a buzina do carro. Quem é aquele desgraçado que lhe deu carona? (…) Pelo amor de Deus, pai, eu tenho quarenta anos (…) Desculpe, pai, paizinho, eu rasguei meu vestido brincando no quintal, desculpe”. Ou seja, em um instante temos uma mulher adulta, no seguinte, uma criança. A sobreposição de planos temporais confere a narrativa uma maior dinamicidade.

Os contos a “Tragédia” e a “A família” destacam-se por terem uma estrutura desordenada. No primeiro, palavras maiúsculas unem a palavras minúsculas praticamente em um texto sem pontuação, que mais parece um poema concretista. No segundo, “A família”, temos três colunas com três possibilidades de leitura: pela perspectiva da mãe “a chorar”, “noite em claro”, “esperando”, ou do pai “a gritar”, que “se esquecia”, que “se embriagava”, ou de um filho que “media”, “pergunta”, “se droga” (…).

Os provisórios (1980) é uma obra que traz à tona problemáticas sociais, em especial, inerentes ao gênero feminino: violência, convivência tóxica, assédio infantil, dependência emocional, desestruturação familiar, virgindade, que nos possibilita debater sobre a necessidade da eficácia de políticas públicas para proteção das mulheres.

 

Leia a matéria no jornal Leia Sempre Brasil Ed. 275