É uma crítica ao automatismo e mecanização da vida e das relações humanas. Mas é também um convite ao consumismo afetivo em um mundo distópico. Trata-se de uma poesia escrita em formato de prosa em que o autor, Afonso Cruz, nos apresenta uma família – pai, mãe, filho, filha – cartesiana, que acaba de adquirir um exemplar de poeta.
Na sociedade em que a narrativa acontece, que facilmente poderia ser a nossa, as pessoas são identificadas por letras e números “B79”, e somente as profissões geradoras de lucro são valorizadas. Em contrapartida, a subjetividade e a individualidade são colocadas em segundo plano. Até mesmo as expressões conotativas, “Maça do rosto” e “Apertar o cinto” são consideradas esquisitas e incompreensíveis.
A narrativa-poética gira em torno dessa família, cuja filha pré-adolescente pede para comprar um poeta. O pai questiona: “Porque não um artista?” A mãe é taxativa em negar, já que “a senhora S638,2” tem um e gasta muito tempo para limpar “a sujidade que ele faz com as tintas naqueles objetos brancos”. Claramente há uma divisão dentro da narrativa entre artistas e poetas, em que os segundos são mais “valorizados”, já que não sujam espaços com seus apetrechos de trabalho.
Pai e filha vão a uma loja para efetuar o negócio: comprar um poeta. São muitos os modelos: “baixos, altos, loiros, com óculos (são mais caros)”. O acessório é vinculado à cultura nerd, dá um ar mais intelectual, basta lembramos dos poetas brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, etc.
O pai gostou de um exemplar que “não tinha patrocínio na roupa” e perguntou ao vendedor se ele era subversivo, “característica mais temida dos poetas”. Na verdade, são sujeitos que acreditam na palavra e a usam como ferramenta para construção de um mundo mais livre e justo.
Outra particularidade dos poetas é o fato de se esquecerem de comer, geralmente, “no pôr do sol ou no luar ou com nevoeiro”. Além do mais, eles ficam “parados no tempo”, são “incapazes de soma mais elementar” e para entretê-los é preciso dar-lhe “cadernos com folhas brancas e canetas” e, claro, livros.
Negócio fechado, pai e filha vão para casa com um poeta. Já no meio do caminho, a narradora sente uma sensação estranha: “o poeta deu-me a mão” e por duas vezes ficou a olhar as borboletas, símbolo de transformação. É justamente o que acontece na vida dessa família com a chegada do poeta.
O irmão da narradora ao ver aquela ser estranho em sua casa, abana a cabeça cinco vezes como forma de dizer que a irmã só se interessava por “coisas inúteis com pouco valor”. Em contrapartida, o poeta parecia feliz, pois agora tinha um lar. Os olhos dele brilhavam, pareciam lágrimas. Deitou-se, tirou e livro do casaco e se pois a ler.
Na escola, as colegas da narradora tiveram uma certa inveja dela ao saber da aquisição do poeta, menos a MN792, que a chamou de unutilista. A grande questão era: “Gostava de ter um poeta, e depois?”. Em outro momento da história, a narradora leva as amigas na casa dela para conhecerem o poeta e a questionam: “O que é que este poeta faz? Poemas, respondi eu. Para que servem? Para muitas coisas. Há poemas que servem para ver o mar”. Outros para não morrer de tédio em um mundo sem afetividade.
Em casa, em que tudo é patrocinado pelas grandes marcas, o pai explica que a “conjuntura externa não era favorável e a fábrica estava a perder cotação de mercado”. Era preciso “apertar os cintos”, sem que os outros membros da família soubessem o significado daquela expressão.
A narradora, pouco a pouco, vai sendo contaminada pela poesia e se apercebe de um mundo para além do qual está inserida. Não é só ela. A mãe dela, cansada de ser explorada pela família começa a repensar sua “posição no mercado da vida”. O irmão não se deixa absorver pela poesia, mas enxerga o poeta como uma ferramenta de acesso ao coração de uma garota. O pai foi o único que não se deixou envolver pelo poeta e sua poesia. Permaneceu como uma pedra no seio familiar defendendo a ideia de que “A dinâmica de um lar exige uma liderança forte, que dê confiança a todos os contribuintes”.
No fim da narrativa, a narradora é dominada completamente pela poesia ao se reconhecer inutilista, querendo saber das coisas não pelo “seu valor monetário ou instrumental”. Platão tinha razão ao expulsar os poetas da pólis: são sujeitos politicamente perigosos, capazes de levar o outro a fabular. Por um mundo com mais poetas…