Quem disse que os motoristas da Uber e os entregadores do iFood consideram os direitos trabalhistas inúteis ou descartáveis? Qual pesquisa – científica, séria, sem vícios – constatou a concordância desses profissionais com as condições gerais de trabalho a que são submetidos?
No começo de 2023, a Uber e o iFood armaram uma cilada para o governo Lula e a opinião pública. Cientes de que o presidente pretendia regulamentar o trabalho por aplicativo, as empresas anunciaram uma pesquisa com motoristas e entregadores sobre “o futuro do (seu) regime de trabalho”. A encomenda foi feita ao Datafolha, o instituto de pesquisa de maior credibilidade no País.
Por trás das boas intenções havia o objetivo de demonstrar que a maioria dos profissionais rejeitava trabalhar com carteira assinada, sob as regras e os benefícios da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Não se tratava de uma imposição dos aplicativos – mas, sim, de um consenso entre empregadores e empregados.
Com grande alarde, iFood e Uber divulgaram a suposta preferência pelo “modelo flexível” de trabalho. “A maioria dos entregadores consultados tem uma percepção favorável ao modelo atual de trabalho”, informou o iFood. “Segundo a pesquisa, 77% preferem manter esse modelo – no qual têm autonomia para escolher seus próprios horários e recusar viagens a qualquer momento – em vez do vínculo tradicional com as normativas previstas hoje na CLT”.
Entre os motoristas de Uber, o apoio ao modelo atual era parecido (75%). Apenas 14% dos motoristas e dos entregadores manifestaram predileção pelo regime celetista. Tudo indicava que essas novas categorias profissionais, nascidas na década passada, eram majoritariamente contrárias ao trabalho formal e, em última instância, indiferentes à precarização.
Não é bem assim. O problema da pesquisa (devidamente acobertado pelos apps) é que as perguntas induziam o trabalhador a avalizar as condições atuais do trabalho. Ao expor aos entrevistados as duas opções – regime flexível ou CLT –, a sondagem manipulava escandalosamente a descrição de cada modelo.
Como funciona o modelo atual, conforme a pesquisa? “O motorista /entregador têm autonomia para escolher seus próprios horários e recusar viagens a qualquer momento, mas sem acesso aos benefícios trabalhistas previstos na CLT para empregados”.
Eis uma meia verdade e, como dizia Millôr Fernandes, “o perigo de uma meia verdade é você dizer exatamente a metade que é mentira”. O motorista/entregador pode, sim, escolher a carga de trabalho e a viagem – só que não de forma impune. Mais do que plataformas que fazem a mera mediação entre prestadores e usuários de serviço, essas empresas têm regras.
Conforme reportagem do Intercept Brasil, entregadores precisam seguir tais regras para ganhar, em média, menos de dois salários mínimos por mês. “Caso contraiam qualquer tipo de enfermidade proveniente de seus ambientes de trabalho, o mais óbvio acontece: não recebem nenhum tipo de auxílio das plataformas. Muito pelo contrário – quanto mais tempo sem trabalhar, por qualquer que seja o motivo, menos trabalho lhes é oferecido.” O preço da liberdade – ou, vá lá, autonomia – é o boicote.
Voltemos à pesquisa Datafolha. Qual seria a alternativa ao modelo vigente? O instituo pergunta se os profissionais preferem “ter vínculo de emprego para acesso aos benefícios trabalhistas previstos na CLT, mas as plataformas definem jornada e remuneração e os trabalhadores não podem recusar demandas em tempo real ou decidir quando dirigir / fazer entregas sem autorização sob pena de demissão ou sanções”.
A sutileza das empresas é converter a carteira assinada num fardo. Trabalhadores formais têm direito a descanso semanal remunerado, 13º salário, férias, FGTS, seguro-desemprego e acesso ao INSS. Nenhum desses direitos é citado na pergunta, que trata tudo, genericamente, como “benefícios trabalhistas”.
Em compensação, o risco de motoristas e entregadores virarem celetistas é descrito com tintas de terror. Ou se mantém tudo como está hoje, ou – em caso de mudança – a única opção é jornada e remuneração pré-estabelecidos, fim da autonomia e um ambiente de pressão. Uber e iFood insinuam que demissões e sanções passariam a ser a regra do jogo, como se hoje os trabalhadores já não estivessem sujeitos a uma série de restrições.
Perguntas viciadas levam a resultados imprecisos e, em última instância, a inverdades. É compreensível que essas empresas tentem “provar” a aceitação do trabalho precarizado. Acredita quem quiser – ou quem não teve acesso ao conjunto da pesquisa. Para todos os efeitos, quem tem a prerrogativa de apontar saídas dignas para a uberização não pode confiar em levantamentos fraudulentos.
Ainda assim, a carteira de trabalho está novamente em xeque – e não se trata da tradicional ofensiva empresarial contra qualquer tipo de regulamentação trabalhista. Assustados com os resultados das eleições municipais de 2024, representantes do campo progressista, como os partidos de esquerda e o movimento sindical, começam a relativizar o trabalho formal.
A tese é a de que não sabemos interpretar o mundo do trabalho atual – este “admirável mundo novo” em que a informalidade bate recorde e o registro trabalhista perde apelo. Tal incapacidade seria uma das causas de nossas derrotas eleitorais. Sem diálogo com os trabalhadores, estaríamos repetindo ações e discursos defasados.
“Tem uma parte da sociedade que não quer ter carteira profissional assinada. As pessoas querem trabalhar por conta própria, querem ser empreendedoras”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na semana passada, em evento com empresários em São Paulo. De acordo com Lula, “mudou o mundo do trabalho no Brasil”, mas a esquerda não se deu conta.
Sua fala foi reverberada pelo jornalista Ricardo Kotscho, em artigo sobre o desempenho do PT nestas eleições. “O partido enfrenta problemas não só na comunicação, como constatou o próprio presidente Lula esta semana, mas no seu discurso e no relacionamento com o eleitorado, diante de um mercado de trabalho que mudou radicalmente desde a sua chegada ao poder em 2003. Carteira de trabalho, por exemplo, virou lembrança do passado”, escreveu Kotscho.
Lula, Kotscho e cia. precisam consultar urgentemente os números da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do IBGE. Os dados se referem ao trimestre encerrado em agosto. É fato: os 39,826 milhões de trabalhadores informais do País representam um recorde.
Mas é igualmente verdade que o Brasil nunca teve tantos trabalhadores formais: são 38,6 milhões de brasileiros com carteira assinada no setor privado, além de 12,7 milhões de servidores públicos. São, portanto, mais de 51 milhões de trabalhadores protegidos por uma legislação supostamente anacrônica.
Diferentemente do que Lula diz, não é que os jovens trabalhadores recusam o regime celetista. Eles preferem, sim, a flexibilidade do trabalho informal (e precarizado) a uma jornada de trabalho mais rígida, com carga horária diária predefinida. Mas não há pesquisa ou estudo sério que mostre o desprezo desses trabalhadores às vantagens de serem celetistas.
Quem disse que os motoristas da Uber e os entregadores do iFood consideram os direitos trabalhistas inúteis ou descartáveis? Qual pesquisa – científica, séria, sem vícios – constatou a concordância desses profissionais com as condições gerais de trabalho a que são submetidos? A quem interessa essa nova onda de ataques à carteira de trabalho?
Do alto de seus 92 anos, a carteira, instituída pelo governo Getúlio Vargas, continua cercada de mitos. É falso que o documento tenha nascido junto à CLT, no Rio de Janeiro, no Dia do Trabalhador (1º de Maio) de 1943. O decreto que a criou a “carteira profissional” é anterior e foi assinado por Vargas em março de 1932, embora a CLT, efetivamente, tenha garantido mais direitos ao trabalhador com carteira assinada.
Tampouco é verídico que sua inspiração seja fascista. Historiadores do trabalho questionam cada vez mais a hipótese de que a CLT em geral e a carteira de trabalho em particular sejam baseadas na “Carta del Lavoro”, criada por Benito Mussolini na Itália. À luz da história, está claro que o registro em carteira é garantia de proteção e cidadania – e não de tutela do Estado.
O coro por desregulamentação e desmonte já resultou em retrocessos como a reforma trabalhista, de 2017, e a reforma da Previdência, em 2019. A esquerda precisa conhecer a fundo a classe trabalhadora para representá-la à altura e ter mais êxito nas eleições. Nada disso, porém, se dará à custa da demonização da carteira de trabalho e de um discurso conservador. Chega de precarização!
Com informações do portal Vermelho.