Na 74ª sessão da ONU em Genebra, onde o relatório de direitos humanos no Brasil é elaborado por relatores da entidade a partir de ocorrências reportadas pela sociedade civil, a Delegação do Governo Brasileiro recebeu em uma audiência privada todos os grupos de interesse presentes, antes da sessão com os relatores.
O cigano Rogério Ribeiro, presidente da Rede Brasileira dos Povos Ciganos (RBPC), entregou, por meio de sua advogada, um relatório de denúncia ao Ministério da Igualdade Racial. O documento continha uma investigação preliminar com provas de abusos de direitos humanos contra a população cigana, apresentando evidências gráficas e testemunhais de invasões, chacinas de famílias, homicídios, detenção, tortura e morte de ciganos pela polícia de Vitória da Conquista, na Bahia, incluindo fotos de corpo de delito e autópsia, com vítimas que vão de crianças a idosos. “Vou abusar de você e te estuprar”, foi uma das ameaças feitas pela polícia da Bahia a uma mulher cigana de 82 anos, conforme registrado na investigação preliminar da RBPC.
Ana Carinhanha, Diretora de Ações Governamentais do MIR, procurou a RBPC informando que era baiana e que possuía atualizações sobre a situação em Vitória da Conquista. Ela afirmou que as portas do MIR estariam abertas para receber as denúncias. O pedido da RBPC ao MIR era claro: uma investigação imparcial sobre os crimes perpetrados por agentes policiais no Estado da Bahia, que até hoje seguem impunes.
A secretária Executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Rita de Oliveira, que presidia a delegação, assumiu o compromisso de enviar uma missão do Governo Federal à Bahia para realizar diligências.
Os relatórios foram enviados e reenviados ao MIR. Mais de um ano depois, o ministério nunca respondeu nem atualizou a RBPC. Enquanto isso, mais homicídios, incluindo chacinas de famílias inteiras com execuções sumárias de crianças ciganas, continuam a ocorrer no estado da Bahia.
A jornalista Stefanie Costa, brasileira radicada em Portugal relatou que em 2023 estava presente na primeira visita oficial da delegação do Brasil para a cúpula luso-brasileira em Portugal para ouvir mulheres imigrantes que lutam há anos por seus direitos em solo português. Atualmente, mais de 400 mil brasileiros e brasileiras vivem em Portugal, muitos dos quais são mulheres negras, vítimas de violência doméstica, racismo, xenofobia e precariedade em postos de trabalho.
Ela conta que durante essa primeira passagem por Lisboa, já como ministra, Anielle Franco recebeu diversos grupos de imigrantes, não só de Portugal, mas de outros países europeus. Assim como o ex-ministro Silvio Almeida, ela se comprometeu a dar apoio e fortalecer os canais do governo para que esses cidadãos pudessem contar com o suporte de uma administração progressista depois de quase sete anos de abandono.
Na ocasião, Anielle se encontrou com a então ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares de Portugal, Ana Catarina Mendes, para propor uma cooperação entre o Observatório do Racismo e Xenofobia em Lisboa e uma universidade pública brasileira, além de um acordo de boas práticas de combate ao racismo.
“Mesmo entendendo as dificuldades do lugar em que estamos, do conservadorismo, da repúdia que houve e do argumento de que não há racismo aqui, nós vamos continuar falando e não vamos desistir. As políticas de igualdade social não cabem somente em uma Secretaria. Eu disse ao presidente Lula que é a primeira vez que conseguimos pautar racismo e xenofobia em Portugal, e isso é um feito histórico”, comentou Anielle Franco após a reunião.
Um ano depois, em maio de 2024, a ministra voltou a Portugal a convite do ministro do Supremo, Gilmar Mendes, para participar do Fórum Jurídico de Lisboa. Anielle não foi a única a marcar presença. Centenas de políticos, empresários, juristas e pesquisadores brasileiros estiveram no evento, financiado pela Fundação Getúlio Vargas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, o IDP.
Stefani narra que “antes mesmo de sabermos da confirmação sobre a sua vinda ao Fórum Jurídico, procuramos Anielle Franco para uma entrevista à Revista Brasil Já (publicação feita por brasileiros com sede em Lisboa), que lançou uma edição especial sobre a luta colonial e o combate ao racismo em Portugal. A resposta da assessoria da ministra foi de que ela não teria horário na agenda para conversar sobre a luta antirracista e outros temas relevantes”.
Mesmo negando falta de espaço na agenda, dias depois Anielle participou de seis encontros durante a sua estadia na capital portuguesa. Nenhum desses compromissos foi com os movimentos sociais da luta antirracista em Portugal. A ministra preferiu ocupar seu tempo com reuniões burocráticas para discutir possíveis trabalhos no futuro, algo que ela já havia feito em 2023 e que, dessa vez, poderia ter sido tratado à distância ou por uma videochamada.
“Infelizmente, perdemos a oportunidade de dar continuidade ao projeto de apoio aos brasileiros em Portugal. Nos foi negada a chance de, por exemplo, mostrar à ministra Anielle Franco a história de centenas de mães imigrantes, vítimas de violência doméstica, que perdem a guarda dos seus filhos para pais abusadores que utilizam de uma convenção internacional (Convenção de Haia) para acusá-las de sequestradoras quando, em última instância, a fuga ao país de origem acaba se tornando o último recurso dessas mães para cessar um terrível ciclo de violência”, diz Stefani.
“Também não tivemos a chance de discutir e ampliar os canais de apoio, junto aos órgãos competentes ligados ao Itamaraty, a respeito da escalada de xenofobia e preconceito que hoje atinge parte da comunidade brasileira em Portugal desde o crescimento da extrema direita no parlamento português. Por fim, não houve qualquer garantia de que os trabalhos de cooperação entre os dois países vão sair do papel ou se terão algum efeito prático na vida das pessoas que aqui [sobrevivem]. Não tivemos nenhuma palavra sobre um tema que a própria Anielle Franco iniciou: a dívida histórica que Portugal tem com os povos das ex-colônias, incluindo o Brasil.”