Descobri que não conhecia a escritora Annie Ernaux no ano de 2022, quando ela foi agraciada com o prêmio Nobel de Literatura.
Estarrecida com o meu desconhecimento, fiz uma rápida pesquisa a seu respeito e, logo a coloquei na minha interminável lista de autoras que preciso ler antes de morrer. Fico pensamento se no post mortem há momentos para a leitura, já que uma vida é insuficiente para ler tudo o que gostaria.
Engolida pelo cotidiano, esqueci-me de Ernaux. Esse ano, a indicação do grupo de leitura @entrelivroseafetos foi a obra Paixão Simples (1991) da autora. Enfim, havia chegado a oportunidade de me encontrar com a primeira mulher francesa a ser premiada pela Academia Sueca.
Comecei a ler Paixão Simples (1991) e dei-me conta de que já conhecia o enredo. Uma busca em minha memória e me lembrei do filme “Uma paixão simples” (2020), da franco libanesa Danielle Arbid. Além disso, havia lido uma entrevista da cineasta falando da sua dificuldade em adaptar o texto, pois ela alegava estar diante de uma obra inadaptável: “Não existia uma história. É apenas um testemunho extremamente preciso de uma paixão”. Confesso que não gostei do filme – uma narrativa de obsessão, uma dependência física e emocional de uma professora universitária por um diplomata russo.
A partir dessas memórias, ponderei: por que ler o livro? Três fatores me fizeram continuar nesta leitura: 1) os livros são melhores do que os filmes, salvo rasíssimas exceções; 2) a obra de Ernaux é autobiográfica, ou seja, criador e criatura são a mesma pessoa; 3) a justificativa da Academia Sueca para premiar Ernaux: “pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”. Diante desses motivos, dei continuidade a leitura – melhor decisão não poderia ter tomado.
Na primeira página, a personagem diz que pela primeira vez assistiu a um filme pornográfico em que “Séculos e mais séculos, centenas de gerações, e só agora podemos ver o sexo da mulher e um sexo de homem se juntando”. Isto é, esse tipo de cena há bem pouco tempo era impensável de ser veiculada, mas hoje se tornou tão “acessível quanto um aperto de mão”. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, mudam-se as concepções humanas: certo/errado, bonito/feio, aceitável/reprovável.
Em seguida, a narradora diz que a escrita deveria se aproximar da cena do ato sexual, causando além de angústia e estupor, a “suspensão do julgamento moral”. Partindo do princípio de que a literatura é subversão, de que importam mais as perguntas do que as respostas, eu também acredito na arte literária como uma ferramenta de compartilhamento de experiências, arrancando o leitor do seu mundinho mediano e previsível, colocando à sua frente os acontecimentos mais absurdos para mostrar-lhe a complexidade humana, lembrando-lhes de que com a mesma severidade com que julga, você também será julgado.
Paixão Simples (1991) é um dos livros mais intricados que já li. Nele, uma autora-narradora relata sua espera interminável por “A”. Ela passou a viver em estado de tormento. Comprou jornais do país dele, escolheu roupas e maquiagens para ele, escrevia cartas para ele, trocava os lençóis de cama e colocava flores no quarto para ele e anotava tudo o que diria a ele no encontro seguinte.
Seu único desejo era desejá-lo, possui-lo. Depois de cada encontro, ela ficava paralisada a ponto de não tocar em nada para manter “aquela desordem” como um quadro, cuja força jamais a impactaria como naquele instante.
Ernaux compara a necessidade de viver aquela paixão como a escrita de um livro: “a mesma necessidade de executar a perfeição em cena, o mesmo cuidado com os detalhes”. Confessava que não se importaria em morrer depois que deixasse registrado toda a paixão vivida. Eis aqui a pulsão de morte da qual fala Sigmund Freud, pai da psicanálise.
Viver essa paixão desafiou a autora-narradora, dado que ela precisava sair de casa, trabalhar e ter que conversar minimamente com as pessoas. Essas ações do cotidiano a devoravam. Ainda havia o fato de ser divorciada, ter dois filhos que “de vez em quando” ficavam com ela. Para eles, contou o mínimo que pôde Sobretudo, porque sabia que “pais e filhos são os menos propensos a aceitar sem mal-estar a sexualidade dos que lhes são carnalmente mais próximos”.
Além dos desafios, observamos uma transmutação no comportamento da autora-narradora ao ser capturada por essa paixão: deixou de escutar música clássica, preferia canções. Passou a ler os horóscopos das revistas femininas, a assistir filmes como “O império dos sentidos”, a dar esmolas e fazer promessas. Em outras palavras, passou a “jogar dinheiro fora com facilidade e não se importar com os acontecimentos externos”. Fechou-se em si mesma.
Se você pensa que estamos diante de mais uma história de um homem casado enganando uma mulher solteira, você está completamente equivocado (a)?. No máximo, encontrará nestas poucas páginas um relato de “um amor louco por uma pessoa”.
Paixão Simples (1991) é uma narrativa sobre uma mulher com seus desejos, suas vontades, suas necessidades carnais. É puramente uma exposição corajosa de alguém refém de deus Eros, em que sua conduta se tornou artificial, seu desejo, sua vontade e “qualquer coisa da ordem da inteligência humana” estiveram voltados para um homem.
Coluna NORDESTINADOS A LER
Por Luciana Bessa, no jornal Leia Sempre Brasil