3 de dezembro de 2024
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Publicado em 1993, Os Rios Turvos, da professora e escritora pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira, é uma obra agraciada com o Prêmio Joaquim Nabuco da Academia Brasileira de Letras (ABL), concedida a biografias.

O livro é a biografia romanceada do poeta Bento Teixeira, autor de Prosopopéia (1601), poema épico dedicado a Jorge d’ Albuquerque Coelho, o então governador da Capitania de Pernambuco, que marca o início da escola barroca no Brasil. Interessante é o fato de o autor ter nascido em Portugal, escrito e publicado o poema em sua terra natal e falarmos de um Barroco brasileiro.

Bento Teixeira, leitor de obras clássicas, homem que não media as palavras que proferias: algumas doces, outras severas e descabidas; cristão-novo (judeu), estudou no Colégio dos Jesuítas, por isso cresceu sob os precitos católicos. Casado com Filipa Raposa, cristã-velha (católica), ambos viveram inicialmente em Pernambuco, mas depois se mudaram para a Bahia, na vã tentativa de Bento limitar o espaço e as amizades da esposa.

Filipa Raposa era uma amante da natureza e dos livros, mulher talentosa com as flores e as palavras, de beleza única – olhos verdes, cabelos ruivos – além de uma personalidade marcante que não se deixava aprisionar por uma sociedade que colocava a mulher exclusivamente no binômio esposa-mãe.

Bento Teixeira, homem conservador, professor de jovens da elite pernambucana, ambicionava escrever versos grandiosos para que seu nome ficasse registrado na história da poesia, tal como fez Camões, autor de Os Lusíadas (1592). Contudo, ao longo da narrativa, acompanhamos as dificuldades dele por encontrar sua forma de expressão.

O desejo de escrever versos que o tornassem imortal, atrapalhou o casamento de Bento e Filipa, já que ela passava dias e noites esperando pelo esposo para se amarem… “Outras vezes se impacientava, chamava-o, ele fingia não ouvir, ela findava por adormecer, sentindo que a poesia lhe roubara o marido”.  Como numa ciranda, Filipa deseja Bento que desejava a Poesia.

Para piorar a situação, Filipa diz ao marido que ele se apropriava das ideias de outros escritores, como Gil Vicente e Camões, o que o deixa profundamente exasperado, triste e agressivo: “Queres me dizer que estou a copiar algum trovador? Queres insinuar que não saberia escrever versos por mim só, sem de outrem me valer?”.

A relação de ambos, em pouco tempo torna-se um ringue de luta. De um lado, uma mulher de família abastada, inteligente, bonita, com facilidade para escrever poesias, e que não se permitia existir sob os mandos e desmandos do marido, tampouco ter seu espaço cerceado por uma sociedade conservadora. Do outro lado, um judeu que escondia suas origens, de família menos favorecida, que lutava para conseguir escrever versos que fossem aclamados por seus pares.

Como o amor é uma arte do encontro-desencontro, Bento acusa Filipa de trai-lo com vários homens. Já ela o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício de ser um cristão-novo. Ele é preso, deportado para Portugal e julgado, mas antes mata Filipa com golpes de facada.

A história de Bento assemelha-se a história de um outro Bento(inho), personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis, atormentado de ciúmes de Capitu, pensa em matá-la, como também ao filho, Ezequiel. Lembra, ainda, a narrativa de Otelo, de William Shakespeare, personagem afligido pelo adultério (suposto) da esposa. Após estrangulá-la, crava um punhal em seu próprio peito.

Após Bento desferir facadas na mulher e deixá-la agonizando, ele foge para o mosteiro de Pernambuco, onde é acolhido. Ao ser julgado e inocentado pelo Santo Ofício, deixa-se ser consumido pela tristeza e pela tuberculose,

Da mesma forma que as águas de alguns rios tornam-se turvos, assim foi a vida e o relacionamento de Bento Teixeira e Filipa Raposo: antagônico, conflituoso e ciumento, levando a morte de mulher em nome da honra.

Ao romancear a vida do escritor Bento Teixeira, Luzilá Gonçalves Ferreira traz à tona temas como o cristianismo, o fazer poético, o amor, o ciúme, o relacionamento opressor vivido por uma mulher inteligente e de beleza estonteante, Filipa Raposa, que pagou com a própria vida por não permitir viver em desacordo com seus princípios, valores e desejos.

Leia a edição 227 do jornal Leia Sempre Brasil desta sexta, 2/8: