Por Plínio Teodoro
Publicado na Revista Fórum
Com 5 votos a favor e 3 contra, além da divergência aberta por Dias Toffoli nesta quinta-feira (20), o Supremo Tribunal Federal (STF) deve definir na próxima semana o julgamento que pode resultar na descriminalização do porte da maconha para consumo próprio.
Caberá a Luiz Fux, mais afeito ao conservadorismo, ou a Cármen Lúcia, que se tem colocado de forma mais progressista, o último voto que pode descriminalizar o usuário e dar o primeiro passo para reparação de um processo histórico de cunho altamente racista em relação à planta no Brasil.
Dados de uma pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, divulgados nesta sexta-feira (21) pela Folha de S.Paulo, revelam que, entre 2010 e 2020, ao menos 31 mil negros foram enquadrados como traficantes ao serem flagrados com quantidade similar de maconha que levaram brancos a responderem como usuários.
Distante do “tom panfletário” – como Luís Roberto Barroso definiu o voto do “terrivelmente evangélico” André Mendonça, contrário à descriminalização –, é preciso conhecer a história da criminalização da maconha e, sobretudo, revelar o alinhamento dessa política com o projeto de encarceramento em massa da população negra pelos neofascistas da ultradireita em sua cruzada hipócrita na questão das drogas. E que se liga diretamente, na atualidade, aos anseios por lucros dos neoliberais em cima da privatização das cadeias.
Meu primeiro contato com essa história se deu nos idos dos anos 2000. Como repórter do Estado de Minas, na região sul do estado, tive o prazer de conhecer o engenheiro Artur Augusto Alves, que havia criado uma pequena usina de produção de biodiesel a partir do nabo forrageiro – que era tratado como erva daninha pelos produtores do café da região.
Alves transformava a planta em biodiesel, que era dado como pagamento pela matéria-prima fornecida pelos agricultores da região e usado para abastecer tratores e maquinários das propriedades rurais.
Para isso, relatou o engenheiro, era preciso fazer pequenas alterações nos motores a diesel – combustível produzido a partir da borra do petróleo. Alves então me contou a história desse motor e como isso se liga ao processo de criminalização da maconha nos Estados Unidos, no início do século 20.
Petróleo e cânhamo
Segundo ele, à época a crescente indústria petrolífera que surgia nos EUA precisava dar destino ao óleo que era descartado após a produção de apenas 18% de gasolina que resultavam do beneficiamento do óleo cru do petróleo.
Descobriu-se, então, que com pequenas alterações no motor a biodiesel, criado para funcionar com óleo de cânhamo – derivado da maconha –, era possível usar um óleo mais espesso (e poluente), cuja produção utilizaria 40% do óleo cru descartado no beneficiamento da gasolina: o óleo diesel.
A descoberta aliou-se ao desejo dos exploradores do petróleo, principalmente do sul dos EUA, que buscavam uma maneira de reprimir a “balbúrdia” da população negra, ex-escravos libertados em 1865 por meio da 13ª Emenda à Constituição, e latinos, em
especial vindos do México.
A ascensão da burguesia do petróleo nos anos 1920 nos EUA coincidiu com a criação do jazz, tocado pelos negros sob inspiração da maconha, planta levada ao país pelos escravizados e cultivado, sobretudo, pelos latinos.
As festas jazzísticas, embaladas por nomes como Duke Ellington e Louis Armstrong, atraíam não só a população latina, como muitas filhas e esposas dos ex-escravocratas, agora ocupados com a exploração do petróleo, que experimentavam a erva e seus efeitos
na libido – hoje comprovados cientificamente.
A maconha ganhou ainda mais popularidade sob a Lei Seca, que vigorou nos EUA entre 1922 e 1933, proibindo o consumo de bebidas alcoólicas.
No entanto, as festas de jazz escandalizavam ainda mais grupos conservadores e religiosos, especialmente os protestantes brancos europeus, que já haviam pressionado pela proibição do álcool.
A criminalização da maconha nos EUA, portanto, atendeu a dois anseios: beneficiar a crescente indústria do petróleo e criminalizar negros e latinos, que eram acusados de “seduzir” as madames que frequentavam as festas regadas a jazz e à erva que escandalizavam os conservadores e religiosos.
A partir de 1930, coube a Harry Jacob Anslinger, um comissário do Serviço de Narcóticos dos Estados Unidos, propagar o terror a partir de fake news sobre a planta – que foi equiparada por ele à heroína – alinhando o “vício” na “erva do diabo” à população negra.
Encarceramento
Incluída em 1937 no rol de substâncias ilícitas, a maconha começou, então, a ser usada para encarceramento da população negra – e latina – nos EUA. O próprio Louis Armstrong chegou a ser preso por se recusar a cumprir a lei. E foi solto após dizer que não se apresentaria sem poder usar a erva.
A criminalização da maconha nos EUA deu início à chamada política de guerra às drogas no mundo.
Dados revelados no documentário Baseado em Fatos Raciais (disponível na Netflix) mostram que o resultado foi uma explosão das prisões nos EUA. Em 2019, quando foi feita a produção, havia 2,2 milhões de presos nos EUA, sendo 1,6 milhão pela Lei das Drogas. Mais de 60% dos presos são negros. Hoje os EUA têm mais negros nas prisões do que escravos em 1850, às vésperas da libertação.
Entre 2000 e 2010, 7,6 milhões de estadunidenses foram presos por posse de maconha. Estudo mostra que uma pessoa negra tem 375% mais chances de ser presa com a planta do que um branco no país.
A política de guerra às drogas, em especial à maconha, ainda culminou na indústria privada do encarceramento, com a privatização dos presídios nos EUA, que detêm hoje a maior população carcerária do planeta.
O projeto neoliberal de privatização das cadeias alimenta uma indústria gigantesca que movimenta cerca de 51 bilhões de dólares por ano, segundo a organização sem fins lucrativos Drug Policy Alliance (dados de 2019), e inclui a sustentação da repressão policial, advogados, sistema judiciários e, principalmente, a manutenção dos presídios pelos grupos privados.
Acontece nos EUA, acontece(u) no Brasil
O processo racista de criminalização da maconha no Brasil iniciou antes dos EUA com a instituição da chamada Lei do “Pito do Pango” em 4 de outubro de 1830 pela Câmara Municipal do Rio.
A expressão faz referência à maconha fumada em cachimbos de barro. A planta chegou ao Brasil em sementes trazidas pelos escravizados e era usada por eles como remédio e como uma forma de atenuar as feridas – do corpo e da alma – do trabalho escravo.
A lei, no entanto, só servia para prender, por três dias, os escravizados. Brancos que faziam uso da erva e mesmo os contraventores que a vendiam pagavam, no máximo, uma multa.
O racismo era explícito no uso médico da planta, que ainda hoje ganha a alcunha suavizada de cannabis – seu nome científico – no início do século 20.
“Enquanto o uso medicinal tinha grande aceitação por parte da classe médica no início do século 20, o consumo não médico de maconha era considerado socialmente um ‘vício barato’ ou um hábito deselegante das classes baixas e dos afrodescendentes. Segundo o médico brasileiro João Rodrigues Dória, em comentário racista, o uso da cannabis seria uma característica “maligna” dos negros, que transmitiam seu “vício” aos brasileiros. Tal discurso racista permitia legitimar a ideia de inferioridade do negro em relação ao branco e também serviu para a construção de uma política criminal que ampliasse o controle sobre o negro, especialmente no pós-abolição, quando outras engrenagens tiveram de ser estrategicamente pensadas para controlar essa classe perigosa, após o fim formal da escravidão sem nenhum tipo de reparação ou política social”, diz a pesquisadora Luciana Boiteux, doutora em Direito Penal (USP) e professora associada de Direito Penal e Criminologia da UFRJ e coordenadora do Departamento de Política de Drogas do IBCCrim, em artigo no Le Monde Diplomatique em 2019.
Já nos anos 1930, o pânico propagado pela política de guerra às drogas nos EUA chegou ao Brasil, aterrorizando principalmente setores conservadores e religiosos. Em 1932, a planta foi incluída no rol de substâncias ilícitas.
Assim como nos EUA, a criminalização da maconha no Brasil teve foco no encarceramento da população negra, especialmente jovens, como mostra a pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper citada acima.
No total, o número de brasileiros presos chegou a 839,7 mil em junho de 2023. Os negros e pardos totalizam cerca de 70% dos detentos e 46,4% têm até 29 anos, segundo dados do Fórum Nacional de Segurança Pública.
Além disso, a política de guerra total às drogas responde por cerca de 38% dos homicídios no Brasil. As vítimas são, quase sempre, jovens negros.
De 2009 até 2019, foram mortos 333.330 jovens com idades entre 15 e 29 anos, e 77% de todas as vítimas de mortes violentas ocorridas em 2019 eram negras, segundo dados que constam no livro Fumo de Negro, de Luísa Saad, que analisa os fundamentos históricos da proibição da maconha no Brasil.
Trazido ao Brasil pelo neofascismo bolsonarista, o projeto neoliberal em torno da criminalização da maconha ganha um cenário futuro ainda mais sombrio com projetos da bancada atrelada ao ex-presidente no Congresso.
Na carta negociada com Arthur Lira (PP-AL) para selar o acordo que garantirá os 95 votos de deputados do PL ao candidato apoiado pelo atual presidente da Câmara para sua sucessão, Bolsonaro deve listar uma série de projetos a serem colocados em pauta no Congresso, entre eles a redução da maioridade penal e a privatização dos presídios.
Bem mais do que a posse da maconha, o que está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal – instância criada em 1891 para defender os interesses da burguesia branca – é uma política de guerra às drogas que drena R$ 50 bilhões por ano, segundo o Ipea, para o projeto fascista neoliberal que leva ao encarceramento e ao assassinato de milhares de jovens brasileiros, especialmente negros.
O voto de Cármen Lúcia – ou de Luiz Fux – pode ser o início de um processo de reparação histórica de uma legislação que levou os povos de matriz africana das senzalas para as cadeias por causa de uma planta criminalizada para servir aos interesses da burguesia, do conservadorismo, do neoliberalismo e da indústria petrolífera.
Uma planta que pode, ao mesmo tempo, oferecer uma alternativa energética, farmacológica e social para ajudar a curar o mundo das mesmas feridas causadas pelos setores que a criminalizaram.