NORDESTINADOS A LER
POR LUCIANA BESSA
Até meados do século XX, as mulheres não frequentaram a escola sob pena de “alguém” fazer-lhe algum mal.
Por volta dos dezesseis anos, fase em que pais e filhos parecem não se entenderem, me questionava: que mal pode fazer uma mulher frequentar o ambiente o ambiente escolar? Que mal pode haver em aprender a ler e a escrever?
Quase uma década depois, descobri a resposta: um mal irreversível. Quando se lê, por exemplo, fica-se sabendo de fatos que, se não soubesse, permaneceria no “mundo das cavernas”, sem contestar nada nem ninguém.
Fiquei imaginando se é por isso que, ao idealizar uma cidade ideal, a “República”, Platão expulsou os artistas. Para o filósofo, a Arte era uma ferramenta poderosa de criar efeitos no espírito humano. Em contato com as artes, criamos sentimentos, descontruímos ideias/ideais e ampliamos nossa percepção de mundo. Criamos asas e não aceitamos ficar sob jugo dos padrões familiares, tampouco sociais.
É exatamente isso o que acontece quando adentramos o universo da leitura e da escrita. O mundo das letras foi/é o passaporte das mulheres para a saída do espaço privado para o espaço público.
Embora tenhamos chegado a este espaço, via de regra, ainda são os homens que mais publicam livros no Brasil (e os que mais são premiados); são eles que ganham um salário maior (embora as mulheres desempenhem as mesmas funções). É o gênero masculino quem ainda decide sobre os corpos femininos.
Digo isso porque recentemente a Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, ou seja, sem precisar passar previamente por comissões, o projeto de Lei nº 1904/24, idealizado pelo deputado do Partido Liberal (PL), Sóstenes Cavalcante, com o apoio de trinta e dois outros parlamentares (doze são mulheres, é preciso dizer) o projeto que equipara o aborto, a partir da vigésima segunda semana, com o homicídio. Logo, a mulher (e aqueles que a ajudarem) que descumprir esse prazo torna-se uma potencial assassina, devendo ser presa.
Outro deputado, também do PL, Eli Borges, alega que essa punição deve acontecer, porque a partir da vigésima segunda semana, o feto está em plenas condições de “viver fora do útero da mãe”.
E não é que Borges tem razão! A questão é: alguém por ventura pensou na possibilidade de a mulher simplesmente não desejar ser mãe? Será que foi cogitado: e no caso de a mulher ser vítima de estupro? E se essa violência for cometida contra uma adolescente de 12, 13 ou 14 anos? O que nenhum desses fiscalizadores da moral e dos bons costumes entendem (e não fazem questão de entender), é que “Criança não é mãe, e estuprador não é pai”, frase proferida pela deputada Samia Bonfim, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e, deste então, bradada pelos quatro cantos desses país.
No Brasil, a taxa de estupro de pessoas adultas e de vulneráveis, crianças e adolescentes, cresceu mais de 8% desde 2021. Estamos falando de mais de 56 mil casos de violência sexual.
Mas de fato, o que significa tudo isso? Que a mulher sairá da condição de vítima e assumirá o posto de assassina, podendo ficar presa por até vinte anos. Ou seja, a mulher é violentada duas vezes: primeiro pelo estuprador, depois pelos apoiadores dos estupradores. Diante de tanta repercussão negativa, o mentor intelectual do projeto Sóstenes Cavalcante já o “melhorou”: sugeriu que a pena para o estuprador fosse de trinta anos.
Resolvida a equação moral-teológica: mulher/vulnerável estuprada que não cumprir à risca a lei – pena de 20 anos. Estuprador – 30 anos. Tão dura e absurda como a proposta brasileira são as leis de países com restrição aos direitos das mulheres: Afeganistão, Indonésia, El Salvador.
Quero voltar antes do fatídico doze de junho de 2024 em que escrevia textos protestando em que homens eram mais premiados do que as mulheres. Do dia treze em diante, mais do que escrever é preciso sair às ruas, usar as mídias sociais, pedir apoio às Organizações não Governamentais (ONGS) que atuam no combate à violência contra a mulher, usar todas as estratégias possíveis para afirmar e reafirmar: “Meu corpo, minhas regras”.