Em meio a tantos retrocessos, a Câmara dos Deputados, numa votação relâmpago, aprovou a tramitação da urgência do PL 1904/2024, que prevê pena de homicídio para quem realizar um aborto após 22 semanas de gestação. Se essa proposta for aprovada pelos parlamentares, a mulher ou criança vítima de estupro que fizer um aborto poderá pegar uma pena de até 20 anos de prisão. Hoje a pena para um estuprador chega no máximo a 12 anos de reclusão.
Ou seja, esse PL 1904, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), em conjunto com outros 33 deputados fundamentalistas (a maioria homem), quer criminalizar a vítima de violência sexual, quer, no fundo, punir a mulher. É misoginia pura. O Brasil tem índices alarmantes de estupro. Foram 74 mil casos em 2023, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, porém esse número é subnotificado porque muitas mulheres não denunciam o crime. A situação é ainda mais terrível quando falamos de crianças e adolescentes, mais da metade (56.820) foi de estupros de vulneráveis, ou seja, crimes contra menores de 14 anos. Nestes casos, o estuprador em geral é parente ou próximo à família.
A legislação brasileira permite à mulher ou criança vítima de estupro realizar o procedimento. Afinal, estuprador não é pai e é uma desumanidade sem tamanho obrigar alguém a gestar um feto fruto de uma violência. Mas a crueldade dessas pessoas não tem limites. Basta lembrar da juíza e promotora em Santa Catarina que se recusaram a cumprir o que diz a lei e quiseram manipular uma criança de 11 anos a não ter o seu direito garantido. Queriam acabar com a vida daquela menina que já tanto havia sofrido nas mãos de um pedófilo. Imagine que maravilha vai ser para esses pedófilos saber que agora as suas vítimas não mais vão procurar a Justiça para exercer o seu direito ao aborto, o que acaba por denunciá-los? Sim, porque muitas vezes até essas crianças se darem conta de que estão grávidas, já se passaram algumas semanas. Muitas vezes outra pessoa, a escola ou até a mãe, percebe que há algo errado com a criança, e descobrem anos de abuso sexual por meio da gestação.
Quem se lembra da menina de 10 anos em Recife que teve que fazer o procedimento em outra cidade, porque fundamentalistas foram à porta do hospital protestar contra o direito dela se livrar daquele feto indesejado e que não vai viver fora da barriga dela? Falam que querem defender a vida acabando com a vida de quem está vivo e precisa de ajuda e apoio para se livrar do trauma e marcas profundas que uma violência sexual traz à vítima.
A mulher ou criança vítima de um estupro leva tempo para lidar com a violência, descobrir a gestação, e aí precisa percorrer um longo caminho para conseguir ter seu direito ao procedimento seguro. Infelizmente, com um sistema de Justiça e atendimento médico-hospitalar que falham por colocar suas crenças pessoais acima do direito daquela vítima, a realização do procedimento pode, sim, ter que ser realizado com 23, 24 ou 25 semanas.
Portanto, o PL 1904/2024 não é um PL sobre o aborto, é sobre o estupro. É para facilitar a vida ainda mais dos estupradores e pedófilos. À mulher ou criança, caberá se calar ainda mais, aguentar as marcas profundas da violência sob o risco de ser presa por 20 anos.
Se esses parlamentares estão tão preocupados com a questão do aborto, por que não fazem um PL para colocar educação sexual nas escolas, com ensinamentos sobre como as crianças e adolescentes podem identificar abusadores? Que tal discutir a cultura do estupro, que leva a frases absurdas como “não estupro porque você não merece”, combate ao machismo e sobre métodos contraceptivos para adolescentes (meninas e meninos)?
A informação e conscientização levam à prevenção. O aborto é a última saída para quem realiza o procedimento. E o Estado deve garantir esse direito. Sem retrocessos. E já que defendem tanto a liberdade, é bom lembrar: você tem o direito de escolher, é livre para isso, ninguém é obrigado a fazer um aborto.
Publicado no site Revista Fórum
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