23 de novembro de 2024
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Olá, leitor. declaração foi feita por Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciência (ABC), em reunião remota da SBPC nesta segunda-feira. Avante, pois!

O que pode haver em comum entre uma tarde em Itapuã, no Rio Grande do Sul, e uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)? A desgraça climática que se abateu sobre o Estado com as cheias começadas no início de maio deste ano. No domingo, fomos Cláudia, eu e o sociólogo francês Philippe Joron, que está em período de pesquisa na PUCRS, com nosso amigo taxista Everaldo, ver a situação no extremo sul da capital gaúcha. Margeamos o Guaíba nas suas possibilidades até a velha Praia do Lami, onde muito banho tomei quando cheguei em Porto Alegre, em 1980. Por fim, fomos a Itapuã, em Viamão. Em tarde de sol, impressões de dias cinzas.

O que se vê pelo caminho? Marcas do desastre. No Lami, as perdas foram grandes. No bar do “Seu” Bueno, às aguas chegaram até o meio das geladeiras. Sidnei, com sua camiseta do Grêmio, vê nas grandes chuvas a na força da natureza uma mostra da existência de Deus. Em Itapuã, na contígua Viamão, as águas ainda impedem o acesso à margem do rio. Por toda parte uma questão parece resumir a perplexidade: e agora? Mais do que a descrição de um cotidiano afetado por uma devastação, com o cheiro forte que marca cada lugar, impressiona essa recorrência expressa discretamente: e agora?

Há uma percepção compartilhada de que não se trata de algo eventual, assim como há uma desconfiança de que os poderes públicos não fizeram o dever de casa e custam muito a fazer chegar na ponta final, lá onde se sente a dor real das enchentes, as medidas e ajudas emergenciais para a retomada da vida. A angústia exprime-se em cada rosto de modo paradoxal, entre um ar de resignação e uma inquietude quanto ao futuro. A esperança ilumina-se no olhar a cada instante, mas, em seguida, vacila.

Na segunda-feira de manhã, depois dessa tocante recorrida do sul de Porto Alegre, participei de uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) com 140 instituições para tratar do desastre climático no Rio Grande do Sul. Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, defende que não se chame de tragédia o que está acontecendo em solo gaúcho, pois tragédia é, por definição, quando não há intervenção humano. No caso, houve falha de gestão. A reunião contou também com a assinatura da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciência (ABC). As críticas foram duras aos governantes que não tomaram medidas preventivas.

Helena Nader, presidente da ABC, foi direta quanto a um ponto bastante sensível: “O Código Florestal foi rasgado pelo Rio Grande do Sul”. Conversei com ela por telefone depois da reunião: “O Brasil é uma tragédia anunciada com conhecimento de causa”, disse. “Mata ciliar o pessoal não quer nem ouvir falar”, acrescentou. Nader vai coordenar uma mesa na 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em 30 de julho de 2024, com um título incontornável: “A política precisa ouvir a ciência”.

Discutiu-se um texto da cientista Márcia Barbosa (UFRGS), “Programa de Emergência Climática e Ambiental”, sobre como a ciência recomenda o uso territorial de modo a estabelecer relação equilibrada com o meio ambiente.

O documento diz: “Somente ouvindo o conhecimento sobre os temas de mudanças climáticas e seus impactos seremos capazes de sobreviver a esta e outras crises”. Antes, contextualiza: “No médio prazo, é fundamental criar um Centro de Gestão de Riscos para o Rio Grande do Sul, serviço não existente no Brasil, mas presente em países que enfrentam emergências climáticas. Este centro teria o papel não somente de monitoramento e alerta, mas igualmente de promover formação de recursos humanos através de cursos para gestores, para comunidade escolar e população em geral de conscientização das mudanças climáticas e de como agir em uma situação de emergência climática. Igualmente ele teria o papel de congregar consultorias associadas às universidades sobre temas como resiliência urbana e rural, uso sustentável da terra, construções em encostas e margens de rios e impacto social das mudanças climáticas”.

A conclusão é límpida: a ciência não tem sido ouvida.

Tambor tribal (Mídia amiga)

Depois de algumas concessões aos fatos, que ameaçavam patrolar as conveniências e os interesses históricos, a mídia dominante resolveu dar um basta e saiu em defesa dos gestores de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul com base no argumento infalível: ninguém podia prever o previsível. Por um instante se pensou que os donos da opinião publicada soltariam a mão dos seus parceiros. O tempo mudou, os ventos de sempre sopraram e as mãos ficaram mais unidas do que nunca. Afinal, no fim do ano tem eleição e não se pode politizar a tragédia, salvo para blindar omissos contra as forças das evidências. Por ora, o principal argumento contra a negligência escancarada é que, mesmo com manutenção, o sistema não teria dado conta da pressão sofrida. Essa manobra tem toda cara de confissão de culpa e de pedido de atenuante.

Parêntese da semana

“Parêntese #228: Mídia, poder?” Luís Augusto Fischer contextualiza o assunto da semana, uma edição robusta: “Hoje é dia de estreia por aqui. Publicamos o primeiro capítulo de uma série assinada pela historiadora Danielle Herbele Viegas. Em Passado e presente da região metropolitana ela nos conta, em cinco episódios, sobre a negligência pública com o planejamento urbano da região metropolitana. O primeiro texto é sobre Canoas.  Gustavo Borba também estreia como colaborador da Parêntese, com um texto sobre como vamos seguir a partir de agora para reconstruir e planejar o futuro: por onde começar?” E, claro, muito mais, pois cultura é sempre mais e melhor.

Frase do Noites

O pior gestor é aquele que multiplica as suas atribuições em campanha eleitoral e as subtrai depois das tragédias consumadas.

Imagens e imaginários

No Pensando Bem, que vai ar todo sábado, 9 horas, na FM Cultura, 107,7, em parceria com a Matinal, a revista Parêntese e a Cubo Play, e apoio da Adufrgs Sindical, Nando Gross e eu entrevistamos o músico Carlos Badia e a produtora cultural Magali de Rossi sobre a situação dos artistas, especialmente dos músicos, no contexto da tragédia climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul no começo de maio.

Crise climática e a saúde: integrar conceitos e unir esforços

A devastadora crise no sul do Brasil completa 30 dias como uma trágica consequência de eventos climáticos extremos. A comunidade científica já havia alertado para as condições de clima e geografia vulneráveis do Rio Grande do Sul, mas não foi prevista a magnitude dessa catástrofe, diferente de tudo que já se observou. Cientistas do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul divulgaram na imprensa estimativas de que 14.2 trilhões de litros de água foram despejados no estuário do Guaíba nos primeiros 7 dias da enchente. Isso corresponde à metade do volume de água do reservatório da usina de Itaipu, que tem o triplo do tamanho do Guaíba. Hoje se contabilizam 169 mortos, 50 desaparecidos, 600 mil desalojados em 471 cidades, estando a capital ainda duramente atingida. Os abrigos em todo estado acolhem hoje 50 mil pessoas. As redes de apoio comunitário são gigantescas e comovem pelo trabalho diligente, longe da luz dos holofotes. A ajuda chega de todo o país que solidariamente se mobiliza.

Na área da saúde preocupam os casos de leptospirose que passaram de um único registro nas semanas que antecederam o desastre, para mil registros na última semana de maio. Ainda nao foram contabilizados os problemas de saúde decorrentes das interrupções em redes sensíveis como a dos cuidados de pacientes em situação crítica, transplantes, e tratamentos oncológicos. Muitos desses tratamentos indispensáveis para manutenção de vidas foram interrompidos no meio do caminho. Os impactos em saúde mental chegam num momento em que a recuperação da pandemia do covid-19 não estava consolidada. Lidar com o estresse pós-traumático e a depressão são desafios crescentes. A solidariedade e empatia não serão suficientes e procedimentos eficazes testados à luz da ciência devem ser implementados para atender a população em tempo hábil. É o momento de unir esforços para reconstruir o Rio Grande do Sul. E também tempo de reflexão. O lado mais sombrio dessa crise é seu aspecto premonitório. Os eventos climáticos extremos serão recorrentes e afetarão mais e mais as águas das bacias do RS, nossos mananciais, nossas matas e outros biomas. No Brasil e no mundo.

Hoje, quem percorre as ruas da cidade de Porto Alegre, observa um cenário de guerra. As imagens obtidas por satélite mostram os fluxos d’água entumecidos. A própria água que transborda tem a cor barrenta da terra que derrete, misturada com detritos orgânicos. A densidade da água com os sedimentos e a rapidez na descida das encostas estão associadas ao dano em estruturas como pontes. Como as bandeiras hasteadas ao contrário, no RS pessoas e animais estão nos telhados das casas, aeroportos estão submersos e embarcações foram encontradas sobre estaleiros nos locais onde o nível da água já baixou. Não é apenas um pedido de socorro. É mais um e dessa vez, agonizante sinal de alerta. Um alerta para que as leis existentes para lidar com desastres transicionem para legislações preventivas, com permanente gestão de riscos futuros.

As ações para atender as vítimas estão a caminho e o mundo Acadêmico tem muito a contribuir para que a ciência ilumine as ações de saúde e auxilie no cálculo da retaguarda necessária. Há também que observar as inovações dos atendimentos on- line e a saúde digital – essa crise deve acelerar o uso da tecnologia como ferramenta central no funcionamento do SUS. Da área das engenharias surgem soluções para o manejo da água em casos de inundação, tornando tragédias como essa evitáveis. Em suma, a ciência terá protagonismo nas ações de saúde. Os cientistas já lideram a avaliação dos impactos do desastre e criação de modelos preditivos para informar estratégias de prevenção. Esse momento de crise é também a oportunidade de adequar o próprio conceito de saúde, que deve englobar o cuidado com o ambiente e considerar as alterações do clima. Todos esses elementos interagem e deles emerge o conceito de uma saúde única. A situação no Rio Grande do Sul é um exemplo eloquente da necessidade desse enfoque.

As Academias Nacional de Medicina e Brasileira de Ciências, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e o Ministério da Saúde trabalham unidos na mitigação da atual crise de saúde e prevenção de agravos. O futuro dos eventos climáticos extremos já chegou. Estejamos atentos ao que a ciência tem a dizer para preservar vidas e evitar futuras catástrofes.

Academia Nacional de Medicina, Academia Brasileira de Ciências e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

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Publicado no site Matinal, de Juremir Machado

Fotos de Ana Claudia Rodrigues