Luciana Bessa
Coluna Nordestinados a Ler
Leitura e escrita são instrumentos de poder. Quem lê e quem escreve é mais consciente de si e dos fatos que estão ocorrendo ao seu redor. Ambas nos permitem enfrentar as experiências (positivas e negativas) a que somos submetidos.
A linguagem, para além de uma dimensão comunicativa, é uma prática social pela qual os sujeitos se constituem por meio de interações sociais. Logo, a linguagem é uma atividade humana, histórica e social.
A palavra é a unidade funcional da linguagem permeada de elementos de natureza visual, acústica e sinestésica. Através dela aprendemos a conhecer melhor o universo de possibilidades que nos cercam, por isso ela tem sentido e faz sentido. Além disso, conhecemos e nos fazemos conhecer pelo outro, desvendamos a nós mesmos e nos aproximamos ou nos distanciamos de pessoas/situações.
Vivemos com/entre palavras, delas nos alimentamos e retroalimentamos. No passado, isso nem sempre foi assim. Pelo menos não para as mulheres que, tardiamente, tiveram acesso à educação formal, à caneta, ao papel e aos livros. Sem nenhuma dessas ferramentas, a narrativa que reveste o universo feminino foi contada por homens brancos.
Não é à toa, que ao longo da história, nós mulheres fomos taxadas de loucas, bruxas, putas, megeras, frágeis, seres sem inteligência que deveriam ficar sob o jugo masculino. Como o espaço público, de caráter político, foi sequestrado pelos homens, às mulheres restaram os espaços privados, voltado para as questões domésticas, o cuidado com o lar e a maternidade. Ser uma mulher bem-sucedida, entre os séculos XVIII e XX, significava casar-se e ter filhos.
Toda essa narrativa deturpada em torno da mulher gerou severas consequências em todas as áreas do conhecimento: na Literatura não foi diferente. O cânone literário tem na sua base os homens brancos, heterossexuais e de famílias com grande poder aquisitivo.
Por isso, se fizermos uma retrospectiva da literatura produzida na Região Nordeste, vamos nos deparar com obras – escritas por homens – de extrema qualidade, a saber: Ceará – Antônio Sales (Aves de Arribação); Paraíba – Ariano Suassuna (O Auto da Compadecida); Bahia – Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela); Sergipe – Tobias Barreto (A Escravidão), Alagoas – Graciliano Ramos (Vidas Secas); Piauí – Júlio Romão (O Monólogo dos Gestos); Pernambuco – Manuel Bandeira (Itinerário de Pasárgada). Para além do eixo Sul-Sudeste há uma literatura forte e pulsante esperando pelo olhar do leitor.
E a produção literária escrita por mulheres? Elas sempre estiveram prontas para colher as palavras e transformá-las em narrativas. O problema, assim como para a personagem Eurídice, da obra A vida invisível de Eurídice Gusmão, da pernambucana Marta Batalha, foi a falta de folhas para escrever suas próprias narrativas, o que contribuiu para que os homens dominassem o mercado editorial. Para Eurídice, “Deram-lhe cuecas sujas, que ela lavou muito rápido e muito bem”. Conosco não foi diferente, mas aprendemos a lutar por nossos direitos e por outros espaços.
Sem folhas, sem lápis, sem caneta, sem “Um teto todo seu”, em alusão à escritora inglesa Virgínia Woolf, a produção literária das mulheres na região Nordeste, pelos menos nos séculos XVIII, XIX e início do XX, foi ínfima. E aquelas que conseguiram furar a bolha e publicar um livro, tiveram seus nomes apagados pelos críticos literários.
Quem leu A história concisa da literatura brasileira (1994), de Alfredo Bosi deve ter notado, que esse compilado literário, que se estende da era colonial até a contemporaneidade, cita quatro nomes de mulheres do século XIX: Gilka Machado, Francisca Júlia, Auta Narcisa (única nordestina) e Narcisa Amália. Apenas esta última recebeu uma pequena biografia.
Enquanto os homens estavam gozando da fama de provedor, desfilando pelos salões, cercado de todos os materiais para que pudessem dar subsídios aos seus escritos, nós, mulheres, restritas ao espaço doméstico, estávamos fazendo o que sabemos fazer de melhor: resistindo para chegar ao espaço público.
Se chegamos? Preste atenção nas obras publicadas da segunda metade do século XX no Nordeste: Ceará – Rachel de Queiroz (Memorial de Maria Moura); Paraíba – Maria Valéria Rezende (Quarenta Dias); Bahia – Sônia Coutinho (Atire em Sofia); Sergipe – Tina Correia (Essa Menina); Alagoas – Arriete Vilela (Lãs ao Vento); Piauí – Nerina Castelo Branco (Outras poesias e além do silêncio); Pernambuco – Débora Gil Pantaleão (Nem uma vez uma voz humana). Se estamos satisfeitas? Claro que não! Há muito a ser conquistado, uma delas é você, leitor!