Luciana Bessa
Coluna Nordestinados a Ler
Grande painel das relações afetivas, morais e sociais – Memorial de Maria Moura (1992) – é a obra com a qual Rachel de Queiroz, aos 82 anos de idade, se despede, em grande estilo, da escrita romanesca.
É a obra mais extensa da autora (em torno de 600 páginas), com dois núcleos: principal, com Maria Moura e os primos Tonho e Irineu; secundário, com o padre José Maria (Beato Romano) e o casal Marialva/ Valentim e o filho Alexandre (Xandó).
O enredo é contado pela voz de três narradores — discurso polifônico (várias vozes) — que quebra a linearidade do romance dando a ele mais dinamicidade e mais curiosidade ao leitor. Os capítulos são curtos se assemelhando aos folhetins do século XIX, sendo intitulados com os nomes das personagens centrais do enredo. A linguagem simples e fluída contribui para que a obra seja rapidamente devorada pelo leitor.
Duas inspirações marcaram o nascimento de Maria Moura: Elizabeth I, Rainha da Inglaterra e da Dinamarca, filha de Henrique VIII e de Ana Bolena, e Maria de Oliveira, uma pernambucana que, no século XVII, teria junto com os filhos e uns cabras, assaltado fazendas para sobreviver à seca de 1602. Mulheres separadas no tempo e no espaço, mas com algo em comum: a força e a resiliência para enfrentar as pedras no meio do caminho.
No caso de Maria Moura foram muitas: cedo perdeu o pai, em seguida, a mãe (não sabemos se praticou suicídio ou foi morta pelo companheiro, Liberato), foi seduzida e ameaçada pelo padrasto, atacada pelos primos, Irineu e Tonho, que se julgavam donos das terras do Limoeiro, onde ela nasceu e se criou. Diante desses fatos, sua primeira ação foi de resistência ao delegado, aos primos, ao padrasto, ou seja, aos homens.
Em uma sociedade machista e patriarcalista em que a mulher “só serve pra dar faniquito”, na concepção do primo Tonho, Maria Moura nos mostra que, em pleno Brasil rural do século XIX, é possível lutar “Pra ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede”. O maior desejo de Moura era ter força, ter fama e que as pessoas soubessem quem ela era. Aprendeu que o dinheiro era o responsável por dar-lhe segurança. Com ele, poderia comprar o que quisesse “uma igreja, um palácio igual ao das figuras de livros”, ou quem sabe um “pedaço do mar”, ou uma “boiada, rebanho de carneiro e cabra, cavalo de raça” …
Maria Moura constrói o mito da mulher forte, decidida e fria, mas no fundo sentia-se solitária. Necessitava de “Mão de homem, braço de homem, boca de homem, corpo de homem”. Diante dessa constatação, lembra-se da mãe e das severas críticas que fez a ela, quando começou a se relacionar com Liberato. Foi a vida solitária que fez com que Moura começasse a se relacionar com Duarte, seu primo. Quando ele precisou se ausentar da “Casa Forte” por um período, se envolveu com Cirino, que a trai.
Sente-se humilhada, por ter lhe dado guarida, por ter aberto seu quarto, sua cama e seu corpo. Sente uma necessidade incontrolável de castigá-lo. A grande questão era uma só: como acabar com Cirino “sem acabar também comigo?”. “Como é que eu posso abrir a arca do peito e arrancar o coração pra fora?”. A traição de Cirino foi o mais duro golpe enfrentado por Maria Moura.
Revolta-se consigo mesma por ter imaginado matar a si e a ele. Lembra-se de todas as suas lutas para fazer o que nem o Pai nem o Avô conseguiram: recuperar a Serra dos Padres, construir a Casa Forte (maior do que a Casa da Torre na Bahia) e se tornar, tal como Elizabeth I, a rainha daquelas terras.
Se acabar com Cirino significava acabar consigo mesma, paciência: “se o sangue pisado aqui dentro me matar envenenada — pois bem, eu morro! Vou morrer um dia, afinal. Todo mundo morre. Mas quero morrer na minha grandeza”. Moura pede a Valentim que mate Cirino com uma facada nas costas. Ele o faz, mas a faca atravessa o coração. Durante semanas Moura não se levanta da cama, “numa espécie de meia morte”.
“Falam que o tempo apaga tudo”. “Tempo não apaga, tempo só adormece…” e “Como um corte de faca, fundo e feio”, Maria Moura, Beato Romano, Duarte, avisando da superioridade do inimigo, e seus cabras partem para o último assalto da narrativa, com uma única certeza: “Se tiver de morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro muito mais”. Rachel de Queiroz e Maria Moura: criadora e criatura tinham uma certeza em comum: todos morrem. Aos que ficam, nenhuma dúvida: Raquel de Queiroz vive na força de cada mulher que não aceita a traição e a subjugação masculina.