O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu nesta quinta-feira (31) o julgamento do marco temporal para demarcação de terras indígenas. O placar estava em 4 a 2 contra a tese que dificulta as demarcações e gerou celebrações de povos indígenas nas imediações do julgamento e pelo país. O julgamento será retomado na semana que vem.
A tese do marco temporal estabelece que só pode haver demarcação de terra para comunidades indígenas que ocupavam a área no dia da promulgação da Constituição Federal: 5 de outubro de 1988. O objetivo é dificultar os inúmeros pedidos de demarcação que tramitam, há décadas.
É uma interpretação do artigo 231 da Constituição, que diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Lideranças indígenas afirmam que a posse histórica de uma terra não pode estar vinculada a esta data, porque muitas comunidades são nômades e outras tantas foram retiradas de suas terras pela ditadura militar.
Festa dos Povos
Os votos foram comemorados pelos indígenas presentes no STF. Assim que ficou clara a vantagem contra o Marco Temporal, os mais de 700 indígenas que acompanharam a sessão do lado de fora da sede Corte, onde tendas e telões foram montados, começaram a cantar e dançar em comemoração.
Em nota divulgada após a sessão dessa quinta-feira, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, avaliou como “positiva” a maneira como o julgamento está avançando. “Os votos do ministro Zanin e Barroso trazem esperança e confiança muito grande para os povos indígenas. Mesmo com a questão das indenizações à terra nua, a proposta do ministro Zanin não impede a continuidade e abertura de novos processos demarcatórios, já que cada caso poderá ser analisado com suas particularidades”, disse.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) expressou sua opinião com uma imagem de engajamento contra o Marco Temporal. Ela citou a decisão de Zanin contra a tese. A deputada Célia Xakriabá (Psol-MG) destacou o fato do ministro Barroso ter rejeitado a tese de indenização de posseiros privados de “boa fé”.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) diz que os povos indígenas seguem mobilizados, na expectativa de ver seus direitos constitucionais reafirmados e a tese inconstitucional do marco temporal definitivamente derrotada.
Votos a conta-gotas
Nesta quinta, o ministro André Mendonça concluiu seu voto, iniciado na quarta (30). Ele foi a favor do marco temporal e sugeriu critérios para aplicação da tese, baseados na possibilidade de haver disputa pela terra no momento da promulgação constitucional.
Cristiano Zanin durante o julgamento do Marco Temporal. Foto STF
Em seguida, o ministro Cristiano Zanin votou contra o marco temporal. Havia enorme expectativa em torno deste voto, pois nas últimas semanas, o recém-indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferiu votos considerados conservadores, o que levou ao temor de que ele pudesse votar a favor da tese apoiada pelo agronegócio.
A sessão desta quinta terminou com o voto do ministro Luís Roberto Barroso, também contra a tese do marco temporal. Ambos acompanharam o voto do relator do caso, ministro Edson Fachin. O próximo a expor sua análise será Luiz Fux, seguido de Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber, que preside a Corte. Gilmar Mendes sinalizou voto favorável, num aparte em que foi criticado por “espalhar fake news” e racismo sobre indígenas da Raposa Terra do Sul.
“Verifica-se a impossibilidade de se impor qualquer marco temporal em desfavor dos povos indígenas, que possuem a proteção da posse exclusiva desde o Império”, afirmou Zanin, ao desempatar a votação.
Para o ministro, o “direito congênito” dos indígenas à posse da terra foi garantido em regras no Império e nas Constituições do período republicano, desde 1934. Além disso, a teoria que assegura o direito aos povos originários é também prevista em convenções internacionais.
Zanin ainda cobrou celeridade nas demarcações. O ministro citou que a Constituição previa prazo de 5 anos para a União realizar as demarcações, que não foi cumprido que deve se tornar uma prioridade.
Barroso lembrou o julgamento do caso de Raposa Serra do Sol, em que os indígenas não estavam ocupando a área reivindicada. “Eu extraio da decisão de Raposa Serra do Sol a visão de que não existe um marco temporal fixo e inexorável e que a ocupação tradicional também pode ser demonstrada pela persistência na reivindicação de permanência na área, por mecanismos diversos”.
O ministro considerou que, na demarcação, é preciso prestigiar a posição técnica do laudo antropológico. Citou também o fato de que a União não respeitou o prazo dado pela Constituição para a demarcação.
Assim como Zanin, Barroso ponderou que é preciso indenizar um não-indígena que obteve a terra dos povos originários quando ficar verificada atuação irregular da União, ao conceder uma área que não poderia ser transferida.
Após o parecer de Fachin contra o Marco Temporal, em setembro de 2021, Kassio Nunes Marques defendeu a tese. Em voto-vista em junho último, Alexandre de Moraes votou contra a tese, defendeu a possibilidade de indenização, mas foi além. O ministro sugeriu, por exemplo, a possibilidade de compensação dos indígenas com outras terras, caso houvesse acordo entre as partes.
Entidades e organizações indígenas reconhecem a importância de Moraes ter votado para invalidar a tese do marco temporal, mas criticam as medidas propostas pelo ministro relativas a indenizações e compensações. Para eles, o voto teve contradições e pode prejudicar a proteção dos povos originários.
Insegurança jurídica
Indígenas Xokleng visitam, nesta quinta (31), a ministra Joenia Foto: Ministério dos Povos Indígenas
A Câmara dos Deputados aprovou em maio um projeto que estabelece o marco temporal, com apoio majoritário da bancada ruralista. Mas o texto ainda precisa passar pelo Senado. A decisão do STF pode servir de base para o Senado decidir se vai ou não votar a proposta.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, devido ao impasse em julgamento, já há 226 processos de demarcação e disputa pela terra suspensos nas instâncias inferiores do Judiciário, aguardando uma definição sobre o tema.
O processo que motivou a discussão no STF trata da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina. No local vivem indígenas Xokleng, Guarani e Kaingang, e o governo catarinense entrou com pedido de reintegração de posse.
Uma comitiva de indígenas da Região Sul do país foi recebida nesta quinta-feira (31), em Brasília, pela presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana. A reunião, na sede do órgão, contou com caciques do povo Xokleng, de Santa Catarina, que apresentaram as principais demandas da região.