Por Ângela Carrato*, no Novojornal
O ex-presidente de extrema-direita e golpista Jair Bolsonaro está inelegível até 2030. Este foi apenas o primeiro dos muitos julgamentos que o aguardam na Justiça Eleitoral e na Justiça comum.
As acusações contra ele são muitas e envolvem desde genocídio contra povos indígenas, negacionismo e negligência durante a pandemia, passando por falsificação de cartões de vacina, tentativa de se apoderar de joias, culminando com o estímulo aos atentados terroristas de 8 de janeiro.
Em todas essas situações, Bolsonaro não agiu sozinho. Tanto que o trabalho que vem sendo realizado pela CPI dos Atos Golpistas da Câmara Distrital de Brasília tem sido ouvir e identificar essas pessoas, sejam militares ou civis.
Caminho semelhante está sendo trilhado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional que apura não só quem atuou diretamente nos atos golpistas, como quem os financiou e planejou.
Curiosamente, parece não ter ocorrido aos integrantes de nenhuma dessas CPIs a convocação para deporem de dirigentes de veículos da mídia corporativa e também alguns de seus colunistas.
Grande parte desta mídia teve inegável papel não só na vitória de Bolsonaro, como na divulgação de mentiras que levaram a visões equivocadas por expressiva parte da população brasileira.
Desde a derrubada da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016, sabe-se que a mídia corporativa tem sido parte integrante do processo golpista no Brasil.
Para quem preferir, pode-se recuar mais ainda no tempo e lembrar como esta mídia difunde mentiras e ódio contra o PT e as esquerdas desde 2004.
A responsabilidade da mídia corporativa brasileira não termina aí. Ela foi igualmente essencial para naturalizar o governo golpista de Michel Temer e transformar a Operação Lava Jato e seus responsáveis, o juiz parcial Sergio Moro, e o procurador federal picareta Deltan Dallagnol em “heróis” nacionais no combate à corrupção.
Agindo desta forma, a mídia criava todas as condições para que o então ex-presidente Lula pudesse ser condenado, sem provas, e preso e para que a população assistisse inerte à destruição da Petrobras, das principais empresas de construção pesada do país, enfim à destruição da própria economia brasileira.
Este, sim, o verdadeiro objetivo da Operação Lava Jato.
Ao longo dos quatro anos do governo Bolsonaro, a mídia corporativa sequer o tratou pela forma devida, um presidente de extrema-direita e negacionista, como praticamente fez toda a imprensa internacional.
Some-se a isso que durante a última campanha eleitoral não faltaram veículos que mentiram e favoreceram descaradamente a candidatura de Bolsonaro.
Por que a mídia não está também no banco dos réus?
Até o momento, a única instituição que se mostra decidida a enfrentar a situação é o Ministério Público Federal de São Paulo, ao pedir, na terça-feira (27/6), a cassação da concessão pública da Jovem Pan.
O pedido de cassação diz respeito apenas a três das mais de 100 afiliadas que a emissora paulista detém.
Ele levou em conta o período de janeiro de 2022 a 8 de janeiro de 2023, citando, através de uma série de fatos, o alinhamento dela à campanha de desinformação que se instalou no país neste período.
Neste um ano, enfatiza o MPF, houve, por parte da Jovem Pan, veiculação sistemática, em sua programação, de conteúdos que atentaram contra o regime democrático.
Mais ainda: são fartos os exemplos de como as condutas praticadas pela Jovem Pan violaram diretamente a Constituição e a legislação que trata do serviço público de transmissão em rádio e TV.
Das 27 infrações que podem resultar em cassação de uma outorga, a Jovem Pan infringiu quase todas.
Além do cancelamento das outorgas de rádio, o MPF pede que a Jovem Pan seja condenada a pagar R$ 13,4 milhões como indenização por danos morais coletivos. O valor corresponde a 10% dos ativos da emissora apresentados em seu último balanço.
Também para reparar os prejuízos que ela causou à sociedade, o MPF quer que a Justiça Federal a obrigue a veicular, ao menos 15 vezes por dia, mensagens com informações oficiais sobre a confiabilidade do processo eleitoral.
Por muito menos, países como Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra ou Japão sistematicamente cassam a concessão de emissoras que atentam contra os fatos e o interesse da cidadania.
O que está acontecendo aqui, no entanto, é a nítida tentativa da mídia corporativa de desvirtuar a situação, falando em “perseguição ideológica” e “censura” e colocando em cena a sua turma de “especialistas” para garantir que nada mude.
Na maior cara de pau, por exemplo, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), em nota divulgada à imprensa, considerou “muito preocupante” a ação ajuizada pelo MPF, enfatizando que “o cancelamento de uma outorga de radiodifusão é uma medida extrema e grave, sem precedentes em nosso Estado Democrático de Direito”.
Se realmente estivesse preocupada com o “nosso Estado Democrático de Direito”, a Abert deveria ser a primeira a concordar com essa cassação, de forma a combater riscos para a democracia brasileira.
Obviamente que ela não fez e nem fará isso, porque interessa a seus integrantes – uns poucos oligarcas que controlam a comunicação no Brasil – que nada mude e a discussão não prospere.
Ao contrário dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, países sempre citados como referência por esses oligarcas, o Brasil é a única das grandes democracias que nunca fez valer a sua legislação sobre rádio e TV, que data de 1962.
Aqui, os concessionários de rádio e TV agem como se fossem donos do espectro eletromagnético e se sentem acima do bem e do mal.
O próprio Código Brasileiro de Telecomunicações (lei nº 4.117/1962) acabou sendo conformado de acordo com os interesses desses oligarcas que, na época, impuseram uma derrota ao então presidente João Goulart e garantiram que o Congresso Nacional promulgasse uma legislação deficiente e nada comprometida com os interesses da cidadania.
Ter enfrentado os “barões da mídia” foi uma das razões da queda de Goulart e possivelmente ela esteja na origem de os governos progressistas da Nova República terem preferido, até agora, deixarem de lado essas questões.
Prova disso é que o MPF está agindo onde há total omissão de quem é de direito. Supervisionar as concessões de rádio e TV é uma das atribuições do Ministério das Comunicações.
Até o momento, o seu titular, deputado Juscelino Filho (União Brasil- MA) não deu um pio sobre o assunto, possivelmente mais preocupado com os cavalos de raça, que parecem ser sua paixão.
O mesmo pode ser dito sobre a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), há muito colonizada pelos interesses que deveria fiscalizar.
Omissa igualmente tem sido a sociedade civil e a cidadania, que através de entidades como a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), sindicatos de jornalistas e faculdades de jornalismo poderiam e deveriam não só pautar essa discussão como solicitar providências dos poderes constituídos.
Para quem não sabe, nos Estados Unidos e na Europa é rotina a não renovação de concessões de rádio e TV ou mesmo a cassação de concessões quando se entende que elas não estão cumprindo com a missão que lhes foi atribuída.
Muitas vezes, as iniciativas nesse sentido são da própria comunidade e não passa pela cabeça de ninguém dizer que se trata de censura.
A grande diferença entre a realidade estadunidense, a europeia e a nossa no que diz respeito à radiodifusão é que nelas permanece uma sólida tradição de 50 anos de Estado de Bem-Estar Social também neste setor.
Desde os anos 1930, existe no Reino Unido a Ofcom, agência reguladora das comunicações, autoridade encarregada de cuidar, primeiro do rádio, depois, da TV e agora também da internet.
Por mais de meio século, o Reino Unido contou apenas com emissoras de rádio e de TV públicas, financiadas por imposto pago pela população.
Desde o primeiro momento, a Ofcom proibiu a propriedade cruzada (um grupo empresarial ser proprietário de mais de um tipo de veículo de comunicação) e esteve de olho para que o compromisso com os fatos, a educação e a cultura fosse realidade.
Não por acaso a British Broadcasting Corporation (BBC), um conjunto de oito TVs públicas e mais de 20 emissoras de rádio igualmente públicas é considerada a melhor do mundo.
Mesmo os ingleses tendo, a partir do governo neoliberal de Margareth Thatcher (1979-1990) a opção para acessarem emissoras comerciais, 76% da população continuam fieis à BBC, pagam o imposto para mantê-la, apoiam sua programação e participam intensamente das decisões envolvendo seu jornalismo.
Também nos Estados Unidos, desde 1934, a radiodifusão é regulada pela Federal Communications Commission (FCC). A comissão é composta por seis membros, escolhidos pelo presidente da República e aprovados pelo Senado.
A partir dos anos 1950, foram criadas rede de televisão e rádio públicas, que atendem, respectivamente, pelos nomes de Public Broadcasting Service (PBS) e National Public Radio (NPR).
A exemplo do Reino Unido, também nos Estados Unidos essas emissoras não têm publicidade. A diferença é que são mantidas em parte por recursos que o governo lhes repassa e pela doação de seu público.
As emissoras da PBS somam mais de 400 em todo o país, enquanto as rádios públicas são praticamente o dobro.
Apesar de números tão expressivos, a mídia corporativa brasileira, quando se refere a TVs nos Estados Unidos, faz questão de citar apenas as redes comerciais ABC, CBS, NBC ou a Fox News.
Não seria isso também uma forma óbvia de desinformação com o objetivo de esconder do público brasileiro a existência de veículos não comerciais de comunicação?
A legislação estadunidense garante também a possibilidade de ações judiciais em caso de difamação e obriga os canais de televisão a exibir, no mínimo, três horas por semana de programação educativa para crianças.
A própria Fox News é um exemplo recente de como a mídia nos Estados Unidos teme as ações judiciais.
Emissora com linha editorial de extrema-direita, ela, que é uma espécie de “referência” para a Jovem Pan, acaba de pagar US$ 1 milhão para a fabricante de urnas eletrônicas Dominion para evitar um processo de difamação.
O processo diz respeito às eleições de 2020 e a Fox, mesmo alinhada ao trumpismo, em momento algum incitou golpe ou guerra civil como fez aqui a emissora do empresário Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o “Tutinha”.
Infelizmente, a radiodifusão no Brasil que sempre deixou a desejar, virou terra de oligarcas, templos inescrupulosos, oportunistas políticos e golpistas.
Comprovadamente a Jovem Pan utilizou programas como Os Pingos nos Is, Morning Show e Linha de Frente para atacar o STF e o TSE e defender que os golpistas no 8 de janeiro “quebrassem tudo”. Isso foi dito diversas vezes no 8 de janeiro, enquanto milhares de pessoas depredavam a Praça dos Três Poderes, em Brasília.
A programação de outras TVs, como Record e Bandeirantes, não ficam muito atrás.
Em várias oportunidades, a Record, em seus programas ditos religiosos, comparou Lula ao demônio e a Satanás.
Já a Bandeirantes, com seus programas policialescos, há muito difunde ódio, preconceito e ataca os direitos humanos. Todas essas seriam razões mais do que suficientes para perderem suas concessões.
A Abert, claro, nunca viu nada de errado nisso e continua não vendo. Tanto que quer manter tudo como está alegando que “não há precedentes em nosso Estado Democrático de Direito” para que uma emissora seja cassada.
Se não há, está na hora de termos uma primeira vez.
Os únicos casos de cassação de concessões até agora no Brasil envolvem outros aspectos. A TV Excelsior, do empresário paulista Mário Wallace Simonsen, por exemplo, foi tirada do ar no final dos anos 1960, porque seu proprietário era amigo do presidente deposto João Goulart.
O fim da TV Excelsior se constitui num caso de perseguição política, sobre o qual se falou pouco na época. Até porque, no mesmo período estava nascendo a TV Globo, sob os auspícios dos militares que deram o golpe em 1964 e com dinheiro da parceria ilegal entre Roberto Marinho e o grupo estadunidense de mídia Time-Life.
Já as três emissoras dos Diários Associados – TVs Tupi de São Paulo e do Rio de Janeiro, e TV Itacolomi, de Belo Horizonte – perderam suas concessões por estarem em situação pré-falimentar.
Assis Chateaubriand, o proprietário dos Diários Associados, foi golpista de primeira hora, nos anos 1960, mas perdeu a primazia para Roberto Marinho.
Voltando aos dias atuais, onde estava a Abert, que sempre criticou Lula por ter criado a TV Brasil, a primeira emissora pública do país, quando Bolsonaro a destruía?
Criar não pode, destruir, pode?!
Onde estava a Abert quando Bolsonaro obrigou a TV Brasil a comprar a peso de ouro a novela religiosa Os Dez Mandamentos, da TV Record, e exigiu que ela fosse exibida pela emissora pública, apesar de o estado ser laico?
Pior ainda. A Abert e suas emissoras têm estado na linha de frente na propagação de mentiras tanto sobre a política interna quanto externa do terceiro governo Lula.
Haja vista o que fazem em se tratando dos juros estratosféricos do Banco Central, dirigido pelo bolsonarista Roberto Campos Neto.
Não é simples para um governo, que tem enfrentado o golpismo em tantas frentes, também enfrentar o golpismo explícito da mídia.
Possivelmente alguns setores do terceiro governo Lula acreditem que dá para ir levando.
Não penso assim.
Recentemente, a mídia corporativa fez muito barulho supostamente em defesa do projeto de combate às Fake News nas plataformas digitais.
Os acontecimentos deixaram claro que o real interesse desta mídia no episódio era apenas garantir que as plataformas as remunerasse pelo uso de seus conteúdos, pouco somando com as fake news.
Prova disso é que no caso da Jovem Pan, onde as mentiras e o golpismo são absolutamente explícitos, essa mídia ficou caladinha. Mais ainda: em momento algum se falou sobre a necessidade de uma legislação integrada para a mídia, em substituição à colcha de retalhos hoje existente no país.
Em matéria de divulgação de mentiras e de golpismo, é sempre bom não perder de vista que o currículo da mídia corporativa brasileira é dos mais extensos.
Na realidade, ela é golpista desde que esteja no poder um governo progressista, comprometido com os interesses da maioria da população e defensor da soberania nacional.
Foi assim com Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, os dois governos Lula, Dilma Rousseff e agora, novamente, no terceiro governo Lula.
Para encurtar o assunto, o que tem feito a Globo News e também o Jornal Nacional, ambos do Grupo Globo, em se tratando da relação do governo brasileiro com a Venezuela e com a Argentina, pode ser enquadrado como mentira e crime.
Ao omitirem que os Estados Unidos atacam a Venezuela para tentarem se apoderar de seu petróleo, como declarou recentemente o próprio ex-presidente Trump e ao criticarem a construção do gasoduto Brasil-Argentina, proposto por Lula, as emissoras da família Marinho repetem os mesmos esquemas mentirosos adotados, no passado recente, em relação às refinarias Abreu e Lima e Passadena, utilizados para desgastarem o governo Dilma.
Repetem os mesmos esquemas mentirosos que colocaram em prática em se tratando da construção, por empreiteiras brasileiras, do porto de Mariel, em Cuba.
Em momento algum, por exemplo, o Jornal Nacional detalhou para o seu público que o gasoduto permitirá um aumento de R$ 402 bilhões no PIB, além da criação de milhares de empregos.
Ao mentirem deixando subentendido que a conta será paga pelos cidadãos brasileiros, essas emissoras contribuíram e contribuem muito para que mais de 52% da população brasileira acredite que “o Brasil corre o risco de se tornar comunista”, como indica pesquisa DataFolha divulgada ontem.
Dito de outra forma, a mídia corporativa distorce e mente e depois, ela própria aufere a opinião da maioria. Opinião que ela foi essencial para criar.
Por tudo isso, se o Brasil não colocar essa mídia no banco dos réus e cumprir a lei, corremos o risco de, permanentemente, continuarmos reféns do golpismo. Vale dizer, desta meia dúzia de famílias que se julgam donas do Brasil.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.