Aula sobre a exclusão de mulheres da economia e da política desde o século 18 provocou reação de aluno da 8ª série de uma escola privada em Porto Alegre. Após pressão, a professora foi demitida
Por Gilson Camargo*, no Extra Classe
O filósofo e economista escocês Adam Smith viveu no século 18 e é considerado um dos fundadores do pensamento liberal do Iluminismo.
Autor de Riqueza das Nações, em suas teorias Smith quase não menciona as mulheres do seu tempo e, quando o faz, insinua que elas, caso tivessem acesso a renda e conhecimento, poderiam atrapalhar o crescimento da economia.
Morto em 17 de julho de 1790, o iluminista e suas concepções misóginas encontraram eco nas cabeças de adolescentes bolsonaristas deste obscuro século 21, durante uma aula de ciências humanas em uma tradicional escola particular de classe alta de Porto Alegre.
Cabe lembrar que a exclusão das mulheres durante o Iluminismo – movimento intelectual surgido na Europa no século 18 e que forjou as bases ideológicas da Revolução Francesa (1789-1799) – não é um tema estranho ao mundo da educação e aparece com frequência nas provas do Enem.
No dia 18 de março de 2022, quase dois séculos e meio depois da morte de Smith, um estudante do 8º ano resolveu interromper uma aula sobre exclusão e invisibilidade histórica das mulheres na política desde o período iluminista com impropérios e ataques à ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e em defesa de Jair Bolsonaro (PL). “Onde tem mulher, só acontece merda”, disparou o estudante.
Ele acabou sendo convidado a sair da sala, a família apresentou uma queixa à direção e a professora foi demitida meses depois de forma dissimulada. A escola nega a relação entre o episódio e a demissão, mas não apresentou um motivo para a dispensa.
A professora de ciências humanas que foi demitida supostamente por pressão da família do aluno é socióloga, pedagoga, doutora, mestre e licenciada em história. Ela lecionava na instituição desde 2019.
“O desligamento foi uma questão política. As agressões e pressões de alunos e de pais contra professores sempre foram uma realidade e a escola nunca se posicionou”, enfatiza ela, que concedeu entrevista com a condição de anonimato. A instituição não respondeu aos pedidos de informações.
O Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência (NAP), mantido pelo Sindicato dos Professores (Sinpro/RS) para acompanhar casos de violência implícita ou não no ambiente de trabalho, acompanhou o caso e reuniu-se com a direção da escola no dia 6 de agosto.
De acordo com Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do NAP, a instituição reiterou que a demissão não teria relação com o caso e argumentou que emprega professores de diferentes posições políticas. A escola, no entanto, não esclareceu o motivo do desligamento.
Iluminismo e a exclusão
A professora relata que a aula citava Adam Smith entre outras figuras do Iluminismo, tendo como questão central a forma como as mulheres foram invisibilizadas nas teorias sobre desenvolvimento econômico, assim como a exclusão às mulheres se mantém na atualidade e a importância de ações afirmativas e do combate à discriminação.
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A maioria dos alunos assimilou o conteúdo, investigando sobre as mulheres no Iluminismo. O debate estava fluindo, mas a certa altura a aula foi interrompida com argumentos fora de contexto e ofensivos, conta a professora.
“Estava finalizando a aula e contextualizei o tema, afirmando que muitas ideias do Iluminismo no século 18 ainda permanecem. As mulheres não estão representadas em vários espaços de poder e política. Citei a lei que prevê cotas para a participação das mulheres na política. Em vários momentos, tive que pedir silêncio e atenção, pois as risadas, os deboches e as piadinhas eram frequentes”, relata.
Ofensas misóginas
Quando a professora mencionou “iluminismo” e a “participação das mulheres na política”, um estudante interrompeu a explanação aos gritos.
“Ele usou uma frase misógina para referir-se a ex-presidente Dilma Rousseff. Argumentei que eu estava contextualizando o conteúdo para que os alunos compreendessem, mas o estudante repetiu a brincadeira: ‘mas professora, o discurso daquela mulher não era horrível?’”.
De acordo com ela, o que se seguiu foi uma série de agressões verbais e acusações contra ela por parte desse e de outros dois estudantes.
“Eu pedi para que parassem e solicitei que fosse à coordenação, mas ele não quis sair. Outros colegas saíram em defesa de Bolsonaro e acabaram também sendo agressivos. Dessa discussão, eles começaram a me acusar, dizendo que eu havia afirmado que o discurso do Bolsonaro era pior do que o discurso da Dilma. Só que em nenhum momento essa comparação foi feita por mim em sala de aula. Não entro nessa seara com alunos”, argumenta.
“Feminista freireana”
Para a professora, esse é um caso típico de aluno que se sente autorizado pelos pais a confrontar e agredir professores por conteúdos em sala de aula – normalmente os docentes são acusados de “doutrinação”.
“Eles não têm argumentos, mas reproduzem as fake news que escutam em casa, na tevê, no WhatsApp. Uma das mães me acusou se ser “feminista freiriana”. Eu não penso que isso seja uma acusação. Eu penso que isso seja um grande elogio. De qualquer forma, os alunos não vão questionar o que os pais falam, mas o que o professor fala, obviamente. E eles estão com essa argumentação em função do que eles leem, o senso comum, as fake news e principalmente o que os pais falam em casa, o que eles escutam”, avalia a professora.
Ela considera que, nessa conjuntura, a docência se tornou uma profissão perigosa.
“Sim, vale a pena ser professor. Mas é preciso ser muito forte, ter um propósito definido e muito claro. Sem a certeza de que o que tu estás fazendo é correto eu diria que é muito difícil ser professor. Não é que valha ou não a pena, mas é muito difícil. Nos tempos atuais ser professor é dar murro em ponta de faca todos os dias porque tu lutas por verdades, eu como professora de ciências humanas tenho que estar sempre provando a verdade dos documentos a verdade dos fatos históricos, dos acontecimentos, do passado que influencia o presente”, explica.
Temas sensíveis em sala de aula
As abordagens em sala de aula sobre temas sensíveis, alerta, são um dos maiores desafios dos professores de instituições, em especial as particulares, que não costumam dar respaldo ao seu quadro docente.
“Eu tenho que cuidar as palavras que eu utilizo. Temas sensíveis como racismo, desigualdade social, direitos humanos, que são básicos para se trabalhar em sala de aula, tenho que cuidar a forma como falo para não ser interpretada como “esquerdista”. Mas isso não tem nada a ver com partido político. Até mesmo a Revolução Francesa, quando eu fui trabalhar a forma como se fala “direita” e “esquerda” tive que explicar, reafirmar e trazer os dados para que eles entendessem”, detalha.
A professora desabafa que muitas vezes se sentia pressionada e desamparada em sala de aula. “É um grande desafio diário, porque você luta contra a ignorância, contra o preconceito e está sempre em constante embate com os alunos que não conseguem compreender os conteúdos justamente devido a essa bagagem que eles trazem de casa”.
Gênero e iluminismo
O episódio de violência simbólica em sala de aula desencadeado durante o aprofundamento do debate sobre gênero e Iluminismo, provoca reflexões sobre as disputas de poder no ambiente escolar.
A professora acredita que a sensação de desamparo tem a ver com aquilo que está em jogo em sala de aula, em uma realidade distorcida do processo de ensino e aprendizagem.
“A tua fala está em constante luta com os pais, que querem que tu tenhas um discurso igual ao deles e também com a coordenação e direção, porque as escolas não querem se incomodar. Querem fazer de conta que ensinam. E os pais querem fazer de conta que os filhos aprendem, é puro status. O professor é cobrado de todos os lados. Hoje não é mais o filho que tirou nota baixa ou não estudou que precisa dar explicação para o pai, mas o professor que tem que explicar por que aquele aluno tirou nota baixa. Eles não leem, eles não estudam, não buscam conhecimento. Eles querem 100% de tudo pronto. Então, realmente é um grande desafio”, desabafa.
“Mas eu reitero: vale a pena ser professor, porque é só a partir de nós professores e daqueles que realmente têm um propósito que a gente vai ser capaz de mudar isso que está posto, o nosso mundo e o mundo de milhares de pessoas trazendo luz, conhecimento para que as pessoas saiam do senso comum e comecem a pensar.
PS do Viomundo: Este artigo foi publicado em 12 de agosto de 2022 no Jornal Extra Classe, iniciativa do Sinpro/RS — Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul. Porém, continua atualíssimo. Por isso, decidimos republicá-lo neste momento